domingo, abril 05, 2020

Covid19. Regresso ao passado: o caso da Peste negra...


"Não é fácil resistir à melancolia de olhar pela janela e ver o mundo lá fora. Mas a epidemia vai passar, a História ensinou-nos"
Daniel Sampaio,
(EXPRESSO, 16.03.2020)

      

             

Coabitamos todos num Covi(d19)l, uma espécie de cova povoada por animais ferozes dos quais nos temos de proteger. Ficar em casa é, neste momento, a decisão mais acertada, mais responsável! Estou em casa há, aproximadamente, um mês. Saí três vezes: uma para ir à farmácia, outra para fazer compra na mercearia local e uma terceira para levar o lixo. Nas três vezes que me desloquei para o exterior respeitei escrupulosamente as indicações que me foram dadas pela DGS. Desloquei-me à rua de forma dissimulada (fui de máscara e calcei luvas), numa tentativa de o miserável malfeitor, o “bicho mau”, não me identificar e, consequentemente, não me abalroar. Em mim existe um sentimento de apreensão diante do que julgo perigoso. É perigoso e tenho medo.
        

                    Permítanme asseverar mi firme creencia en que nada debemos                      temer sino el miedo en sí.
                                                                                                                                                                                          Franklin Delano Roosevelt
                                                                                                                                                                                                               Discurso de investidura, 1933[1]




       
O medo que tenho, que temos e que nos flagela. O medo que é sempre mais temível quando é difuso, disperso e pouco claro; quando se move livremente, sem vínculos, sem amarras, sem lugares visíveis; quando nos ronda sem emitir sons; quando a ameaça que tememos pode ser provável em qualquer parte; quando é impossível vê-la num lugar concreto. O medo é isso, o nome que atribuímos às nossas incertezas, à nossa ignorância acerca do que se pode ou não pode fazer para a detê-lo ou para combate-lo, sem conseguir acabar com ele quando se nos revela como algo que está para além do nosso alcance. O medo é um sentimento conhecido de todos nós. Na presença de uma ameaça que constitua um perigo para a nossa vida, a nossa resposta oscila entre uma de duas opções: a fuga ou agressão. Nalguns outros casos na agressão e na fuga imediata. Mas o nosso medo ao perigo não depende tanto da dimensão ou da natureza das ameaças reais mas, sobretudo, da ausência de confiança nas defesas que temos disponíveis. A insegurança e a nossa vulnerabilidade são recicladas social e culturalmente, tornam-se rotineiras e são por nós interiorizadas de tal forma que nos permitem adquirir as imprescindíveis capacidades para darmos respostas quando enfrentamos um determinado perigo. Os medos são complexos e variados. Pessoas de categorias sociais, de género e de idade distintas vivem, podem viver, obstinadas por medos relativos à sua pertença e/ou condição. Mas medos existem que todos nós compartilhamos independentemente da zona do planeta em que estejamos ou vivamos: o medo, entre outros, das catástrofes naturais e ambientais[2]. O prometedor, o que nos torna capazes, o que nos determina 
 é a inteligência que em nós se agiganta sempre que temos de enfrentar o medo e nos dá aptidões de vermos para além dele, do medo. Para estes medos não existem fármaco nem é provável que se produza algum tão rápido quanto ambicionaríamos. Estão neste caso, entre outras, aquelas que exaustivamente a história social das doenças nos narra, nos narras de tal forma que a sua própria referência funciona como agente contaminante: as doenças infetocontagiosas.
                                                                               
                                                                                                          Por medo dos pardais,
                                                                                                                                                               Não se deixa de semear cereais.
                                                                                                                                                               Provérbio popular


       Antes do covid-19, - que, nos últimos meses, nos tem perturbado, martirizado e vitimado -, a humanidade já experimentou outros acontecimentos semelhantes. Regresso ao passado, ao seu ventre, para ajudar a expulsar do seu útero o seu passado histórico tão repleto de factos e em que a vida do homem é como uma vela acesa ao vento.

            Regresso ao passado: o que a história nos ensinou (?!) 

O conceito de Idade Media não foi, não é ainda nos nossos dias, universalmente aceite por todos os historiadores. São distintas as considerações e subdivisões concetuais construídas por distintos investigadores e historiadores. “O conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII - quase sempre em sentido pejorativo - para transformar-se, no século XIX, num topo fixo da periodização histórica”[3]. Não é, no entanto, esta discussão que (me) importa, nem sou, tão pouco, a pessoa mais indicada para discutir os postulados, conclusões e/ou métodos usados pelo investigadores e historiadores para sustentar uma ideia e/ou refutar outra. Todas estas divisões e compartimentações encerram, porém, algumas insuficiências e arbitrariedades históricas. O percurso telegráfico que aqui se fará não tem uma sequência cronológica, i.e. o tempo das coisas não é estudado nas suas divisões sequenciais com o objetivo de distinguir a ordem de ocorrência dos factos. Não é esta a preocupação que norteou este texto. O que se pretende é regressar ao passado, - a alguns acontecimentos marcantes da história da humanidade -, e, apoiado pela história, pela literatura e por outras investigações disciplinares que sobre estes acontecimentos refletiram, tecer algumas apreciações relacionadas com as doenças que atingiram a humanidade, sobretudo nas que ocorreram na designada idade média. A história, e a literatura são fundamentais para percebermos o que se passa, mas não nos permite comparar situações e contextos distintos. As comparações são de uma forma geral enganosas. O reservatório da experiência que a história e a literatura nos fornecem devem ser considerados e compreendidos.

Ambicionar relacionar situações que se desenvolveram em contextos diferentes seria um erro. Comparações que se revelariam, por isso, falaciosas. O (meu) objetivo é percorrer o reservatório de experiências e com ele procurar entender melhor, ou de forma distinta, o nosso presente. Para ser mais claro: investigaram-se aqueles textos que, explícita ou implicitamente, contribuem para a compreensão e relação entre um determinado passado e um presente em transmutação. A perceção da relação entre passado e futuro alterou-se, de forma evidente, também, na sequência das gerações históricas que foram  emergindo. Neste texto o antes e o depois constituem o horizonte de sentido desta narrativa[4].

Idade Media e a peste negra

As primeiras e mais funestas epidemias na Europa apareceram[5], propagaram-se[6], tornaram-se endémicas[7], passaram a epidémicas[8] e, por fim, transformaram-se em pandemia.[9] Aconteceram em lugares diferentes do globo em fins do século XII ou início do século XIII. As doenças mais funestas que emergiram no continente europeu, neste período, foram a lepra, a sífilis e a varíola. A peste negra[10] seria a maior afronta às gentes do século seguinte. Importa, por isso, compreender a importância da peste negra epidemia que se manifestou no século VI, retornou um pouco antes de 1350 e permaneceu doença infeciosa até depois de 1650.[11] A peste negra era transmitida através de ratos infetados. A impossibilidade de se combater a peste negra e a maioria de outras doenças infetocontagiosas levou a que durante um longo período de tempo, se considerasse um castigo divino imputando-se, por isso, a, entidades sobrenaturais de natureza maléfica (diabo, lúcifer: o primeiro de todos os demónios) o aparecimento dessas doenças. Os demónios e os espíritos maus eram os responsáveis pelas enfermidades, mas as principais razões, para outros, concentravam-se nas impurezas do ar e das emanações pestilentas, expelidas pelos corpos em decomposição, das substâncias fedorentas, assim como, das águas estagnadas e nauseabundas que, nas ruas, no burgo e nas cidades pululavam. Estas convicções não se contraditavam mas complementavam-se. Não seriam, provavelmente, as únicas razões justificáveis para a emergência dessas doenças, muitas outras existiram, mas essas atribuições, construídas antes da descoberta da microbiologia, centravam-se em elementos que eram, de facto, nocivos para à saúde, e que surgiam em ambientes insalubres e pantanosos, a partir de matérias putrefactas e de elementos em processo de decomposição. A crença de que a doença e a sujidade estão relacionadas permitiu antever a necessidade de cuidar da limpeza para se conseguir preservar a saúde, cuja finalidade principal era afugentar a morte. A morte e a doença tornada possível na vida[12].

A bactéria da peste negra, entre outras, demonstrou ao mundo a presença de um outro mundo, quase invisível, que, somente com os avanços das ciências e das tecnologias médicas, os microscópios vieram a permitir observar.

Os ratos eram os principais transmissores dessa doença infeciosa, designada por peste negra. A designação de “peste negra” e a “magia negra” estavam relacionadas com a cor preta/negra. Esta cor tinha uma conotação pejorativa no Ocidente. A ligação do preto/negro à peste e à magia não era alheia a perceção construída e difundida acerca das pessoas escravizadas de origem africana (os negros). Afirmava-se, assim, como um preconceito pejorativo acerca das pessoas negras escravizadas[13].

A peste negra manifestou-se de duas formas: bubónica e pneumónica. A primeira caracterizava-se por inchaços, ou ínguas, nas axilas ou virilhas, levando a pessoa infetada à morte até do final ao sexto dia de infeção, aproximadamente. A pneumónica era transmitida de pessoa a pessoa, levando os infetados à morte até ao terceiro dia de infeção[14]. A bubónica tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que dela morriam) de 60% a 80%. A peste pneumónica tinha uma letalidade de 100%[15]. É necessário relembrar que durante centenas de anos as doenças contagiosas, as chamadas pestilências, originaram mais vítimas que os principais conflitos armados. Por toda a Europa terão morrido milhões de pessoas, embora seja difícil saber os números reais de tal mortandade.

A peste negra, o “mal de que Deus nos livre como noutros tempo se designava, entre outras epidemias, originaram dificuldades financeiras e um declínio populacional que afetou as relações entre camponeses, proprietários rurais e as comunidades em geral. As perseguições fizeram-se sentir durante os tempos em que a peste negra se manifestou. Responsabilizar alguém era imprescindível para justificar os males que devastam as comunidades: os judeus eram os “principais responsaveis pela transmissão da doença” e, por isso, foram, mais uma vez, perseguidos e massacrados em nome da fé e de grupos religiosos fanáticos que espicaçavam as populações contra os judeus. O efeito da peste negra sobre a sociedade foi tumultuoso e complexo, contribuiu para o aumento da violência contra os judeus e outros “profanadores” de um qualquer preceito religioso e motivou muitas revoltas. Hoje sabemos, um saber da ciência feito, que antes da erradicação de um novo vírus, um agente infecioso, o contágio acontece, de uma forma geral, através do contacto com as excreções das vias respiratórias, das lesões da pele de pacientes, ou através de os objetos recém-contaminados.

A peste negra era democrática, igualitária e universal alcançava indiferentemente todos. Contrariando alguma (des)informação disseminada de que a má nutrição era a causa  principal do contágio da peste negra aferiu-se que os ricos e os pobres, corpos bem e mal nutridos, eram igualmente contagiados pela peste. O que distinguia um rico de um pobre, neste caso, não eram as suas díspares desigualdades sociais. A diferença principal, entre eles, estava no simples facto de se estar ou não mais exposto ao contágio. Grupos como os médicos, padres, coveiros, entre outros profissionais, eram os mais afetados. As regiões agrícolas, constituída por pessoas mais dispersas territorialmente, eram mais poupadas que as gentes das cidades. À medida que: crescia a distância social entre as pessoas; as mesmas se afastavam-se dos locais tocados pela peste negra; alterando as suas rotinas e hábitos, típicos da vida da cidade, ampliando as possibilidades de não serem contaminadas. Foi o que fizeram, por exemplo, com os personagens do Decameron, de Giovanni Boccaccio[16], que abandonaram Florença e foram viver isolados nos arredores da cidade enquanto a peste lesava os concidadãos que não tinham recursos[17].

A peste negra foi a maior tragédia demográfica da história ocidental: num intervalo de tempo bem menor, matou, em termos absolutos, mais do que a Primeira Grande Guerra Mundial e, em termos relativos, considerando-se a população europeia nos dois momentos, mais do que a Segunda Guerra Mundial[18]. A peste negra “atingiu Portugal, com uma regularidade média de sete a oito anos. Existem testemunhos de surtos em 1356, 1361-1363, 1365, 1374, 1383-1385,1389, 1400,1415, 1423, 1429, 1432-1433, 1437-1441, 1448-1453, 1456-1458, 1464, 1466, 1468, 1469, 1472, 1477-1478, 1480, 1497”[19].

A partir do final da Idade Média e das audaciosas expedições portuguesas, encorajadas e orientadas pelo Infante D. Henrique, iniciou-se a exploração europeia. Após a tomada de Ceuta (1415), os portugueses foram os pioneiros de uma série de viagens ao longo da costa africana ocidental. O êxito comercial dessas viagens, graças à importação de especiarias pela Europa, acelerou seu desenvolvimento; esperava-se alcançar as especiarias de melhor qualidade da Índia e incentivar o lucrativo comércio com os árabes. Foi o começo de uma era: a expansão portuguesa e europeia[20].
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A expansão portuguesa provocou choques violentos nas estruturas sociais, económicas, culturais, políticas e demográficas, entre outras, também pela manifestação de novas moléstias. Com a chegada dos navegadores portugueses às quentes terras de África e dos Brasis, onde enfermidades desconhecidas os aguardavam, em especial bactérias e parasitas dos mais variados. Os marinheiros eram porto de abrigo de organismos que deles obtinham alimento e, não raro, lhes causava dano. Do mesmo modo, os navegadores e outros que de maneira ilegal ou maldosa, auferiam lucros e vantagens à custa de outros, arrastavam com eles vírus e bactérias que foram causa de imensas mortandades nas gentes nativas. Os navegadores, os marinheiros e aventureiros portugueses, entre outros, fizeram import-export de várias enfermidades. Com o transporte de pessoas escravizadas de origem africana (negros) dispersaram, ainda mais, outras doenças. As malhas que o império tece introduziram com ele em 1521 uma moléstia infeciosa que ataca um grande número de indivíduos e, entre eles, o próprio rei D. Manuel I[21]. Nos hospitais o “fizico”, os cirurgiões e a botica bem abastecida não conseguiam dar resposta às imprevisíveis doenças. O desconhecimento e a ignorância, as limitações do saber médico acerca de muitas destas novas doenças aumentarem o receio da sua propagação no reino. Só a experiência do saber feito viria a criar soluções provisórias para as inesperadas doenças. Provisórias porque, como sabemos hoje, somente com as descobertas científicas (ex: da penicilina em 1929, pelo médico bacteriologista inglês Alexandre Fleming) foi possível, mais tarde, combater alguns, destes grandes pesadelos da humanidade, através da comercialização de antibióticos em grande quantidade.

            Durante aproximadamente 450 anos a sífilis reinou em toda a Europa. Terá “sido trazida em 1492 do Novo Mundo pelos homens de Colombo para a Europa”[22].

Com o advento das doenças tropicais, D. João II decidiu que:

nenhuma nau passasse o Restelo sem autorização prévia. (...) sob pena de perda da mercadoria e navio, sendo açoitados os mestres que tal demanda não respeitassem. Se existissem doentes a bordo a nau ficava em ´periodo de impedimento` na embucadura do rio até os doentes terem melhorado”.


Este período foi no século XVII fixado em quarenta dias e passou como tal a ser  designado por quarentena[23].

Prescrições semelhantes já tinham sido antes seguidas pelas autoridades portuárias mediterrâneas de Marseilles, Veneza, Pisa e Génova.  Na primeira metade do século XV, foi construído o primeiro lazaretto ou casa especialmente destinada à contenção e observação médica de pessoas estrangeiras portadoras de lepra e peste. Neste  estabelecimento, para observação sanitária, as pessoas eram colocadas de quarentena sempre que se atestasse que eram portadoras de moléstias contagiosas. É interessante constatar que a República de Veneza estabeleceu o primeiro quadro de saúde, em 1458, formado por três nobres com o objetivo de investigar e decidir qual o melhor procedimento a adotar para preservar a saúde pública na cidade. Os regulamentos italianos e as leis de quarentena serviram de modelo para outros estados[24] .


            Contágio da sífilis: as vítimas transformam-se em culpados

Em França no século XV, as medidas adotadas contra os parisienses sifilíticos eram a segregação: guetos constituídos por barracas deploráveis fora da muralha de Paris. As entidades responsáveis pela saúde de Paris haviam admitido como solução, a menos dispendiosa e a mais adequada, o encaminhamento dessas pessoas portadores de sífilis para uma leprosaria. Ora, o leproso “era visto, na sociedade medieval com um misto de repulsa e de compaixão visto, como considerava a Igreja Católica, terem sido concebidos em período proibido às relações sexuais, nomeadamente durante o período menstrual, esta impureza física e moral marginalizava-os”.[25] Mas, mesmo marginalizados, de imediato, os leprosos rejeitavam a possibilidade de pessoas com sífilis serem remetidas para as leprosarias. Esta pretensão fracassou por causa da oposição das próprias pessoas leprosas: amotinaram-se e recusarem tal companhia. Igualmente os estrangeiros chegados a Paris e que presumidamente sofressem de sífilis eram imediatamente forçados a sair da cidade em 24 horas. Eram-lhes oferecidos quatre ecus para que regressassem à origem. O desrespeito desta ordem era severamente penalizado com pena de morte. Mas por muito duras que fossem as prescrições, muitos eram os estrangeiros que desobedeciam. Novas leis foram decididas, ordenando que, sempre que se achasse um estrangeiro sifilítico, o mesmo fosse afogado no Sena. Paris, que se mantinha fiel à teoria do ar alterado, impedia as pessoas doentes de conversar ou contactar com as pessoas sãs. As prostitutas deveriam abster-se da prática da prostituição, sob pena de serem marcadas com um ferro em brasa e depois banidas[26].



As mulheres que mercadejavam o corpo tinham os seus bairros prostibulares na cidade de Lisboa. As autoridades eclesiásticas sempre cautelosas e em nome dos bons costumes e a da moralidade cristã decretaram no sínodo de 1307, a sentença de excomunhão contra aqueles que alugassem casas às meretrizes de Lisboa. Uma medida repressiva e excludente que contribuiu para o aparecimento dos ditos bairros. Abandonadas, algumas destas mulheres, vagueavam de tabernas em taberna, de albergaria em albergaria, por caminhos e por feiras com a fragrância da miséria e do abandono. A sua presença contribuía para a emergência de furtos, brigas, desacatos, conflitos físicos e para a disseminação de algumas das doenças que pululavam por toda a cidade. Para além da deficiente higiene pessoal abundavam as rixas, os duelos e, consequentemente, os ferimentos eram frequentes e alguns mortais.[27]

Eram as relações sexuais a principal fonte principal do contágio da sífilis eram as relações sexuais. Mas o aparecimento da doença em “algunos religiosos y dõzellas y criaturas y honestísimas personas” indica que o contágio “no solamente se apega por canal ayuntamento: pero por dormir en una misma ropa e beber con el mismo vaso” previamente utilizado por sifilíticos. A transmissão da doença faz-se de uma pessoa a outra, por contacto direto ou indireto, por isso, já nesta altura, se aconselhava a lavagem cuidadosa e imediata sempre que alguém tivesse contacto ou “ayuntamento com mujer”. Se o fizer, no dizer clínico, “ nunca padecerá la semejante enfermedad”.[28] Lavar as mãos antes e depois das refeições era aconselhado.[29] Mas estas indicações contrastavam com a escassez de higiene e de saneamento público das cidades, das vilas, das aldeias, das ruas, dos becos e, sobretudo, das próprias habitações. Os odores proliferavam e eram desagradáveis. O bom senso privado [deveria] conjugar-se com o interesse geral[30].

Muitos crentes tinham a convicção, como já foi referido, de que as epidemias provinham dos maus cheiros que provocavam a corrupção dos ares e das águas, sendo as esterqueiras os focos da putrefação. Era normal lançar nos poços, fontes ou chafarizes, coisas sujas e fedorentas: roupa, coiros ou peles, besta mortas, cães ou outros animais. “Proibia-se que nas praças ou ruas públicas se lancem testeiradas de lixo ou d´água, bem como que alguém o fizesse da janela para a rua sem primeiro dizer três vezes “água vai”, isto é, despejavam-se, entre outas coisas, os bacios para as ruas[31]. O crescimento das cidades associado às condições de vida medieval que se caracterizava, entre outros, pela escassez de estruturas de saneamento básico, em que os dejetos corriam a “céu aberto”, e a pavimentação das ruas era praticamente inexistente, facilitavam mais imundície, maus cheiros e, naturalmente, o aparecimento de imensas enfermidades.

A cólera, a sífilis, a peste, a lepra, entre outras doenças, eram contagiosas e de um a outro se pega e eram estigmatizantes. As pessoas que de um destes males padecesse eram obrigadas a possuir marcas distintivas de forma a poder prevenir quem com eles se cruzasse e, se assim pretendesse, escapar-se para sua proteção. Tempos existiram em que a prostituição passou de clandestina a regulamentada, que compreendia a tributação e atribuição a estas mulheres de lugares bem delimitados, as mancebias (casa de prostitutas; bordel, prostíbulo)[32]. As desigualdades sociais e económicas existiam, também, entre as prostitutas. Algumas desfrutavam de um compensador nível de vida e alguma consideração social por serem instaladas por conta de clérigos, nobres ou respeitáveis cidadãos. Estas, não usavam as mesmas vestimentas que eram impostas a outras prostitutas. Estas tinham de usar vestimentas diferentes das usadas pelas mulheres de família. Usavam véus bem açafroados (cor de açafrão) para se distinguirem das mulheres honestas, as mulheres de honra. A segregação e o estigma que se manifestava, igualmente, no uso das roupas, no reinado de D. Afonso IV, estendiam-se aos judeus que deveriam usar uma marca amarela no chapéu bem visível, para puderem ser identificados como tal. Viviam nas judiarias dentro das muralhas da cidade. Os mouros eram igualmente forçados a usarem trajes que permitissem a sua identificação, pelo que, deveriam incluir um sinal branco no barrete. Os mouros viviam nas mourarias, nome que recebiam os bairros onde os cristãos os obrigavam a viver. Judeus e mouros eram marginalizados, sobretudo, por causa das suas opções culturais às quais não renunciavam. A noção de pureza e impureza, as práticas alimentares, os modos de vestir, entre outros, estabeleciam as maiores diferenças entre mouros, judeus e cristãos. Embora não vivessem numa situação de absoluta exclusão social os mouros e os judeus habitavam em mourarias e judiarias com portas guardadas que se abriam com o alvorecer e fechavam ao anoitecer. Os sinos das igrejas da cidade de Lisboa davam o toque das ave-marias [33] ou da Trindades[34] ao cair da noite, o que implicava o recolher obrigatório, igualmente para os cristãos. Os médicos judeus tinham normas específicas podendo, por isso, deslocar-se a qualquer hora para atenderem doentes[35]. A cidade de Lisboa estava demasiado fechada nas cercadas muralhas, por portas, arcos, passadiços, escadas e postigos, agravando-se o mal, por estas e outras razões, devido a problemas de escassez e ao número excessivo de indigentes que deambulavam pelas ruas. No Rossio e área norte da cidade, existiriam aproximadamente 15 portas: a porta da mouraria, a porta do sol, a porta do Martim Moniz, a porta de Santana, a porta de Santo Antão, entre outras[36].

Era, pois, num contexto demasiado fechado, o que não impedia, porém,  o aparecimento das doenças infetocontagiosas que se estendiam a todos os grupos etários do clero, da nobreza e do povo. Emergiu o medo e o alarme, a dor no seio das famílias afetadas pela doença, sobretudo entre os pobres e os mais debilitados; arregimentou, igualmente, as multidões contra as minorias, estigmatizadas por fundamentalismos morais ou religiosos; consolidou o papel de líderes religiosos, enfraqueceu o prestígio de envelhecidas teorias médicas e permitiu a emergência de sistemas doutrinas rivais; criou novas dinâmicas nos governos e aparelhos da administração pública no combate à doença e o aparecimento de uma "polícia médica" em alguns países[37].

Mas estes julgamentos de natureza moral acerca das classes sociais mais desfavorecidas não batiam certo com a realidade, já que as doenças atingiam todos e todas as grandes figuras da sua época: “Carlos VII (1422 - (1461), Luís XII (rei francês 1462-1515), Francisco I (monarca austríaco 1708-1765), e Henrique III de França (1574-1589). O imperador Carlos V (1500-1558), Henrique VIII de Inglaterra (1491-1547), seu filho Eduardo VI (1547-1553) e sua filha Maria Tudor (rainha inglesa (1516-1558), os Papas Alexandre VI (1492) e Júlio II (1503) e até Filipe II de Espanha e, I de Portugal (1581-1598), não lhe escapou”[38].

Em julho de 1415, a Rainha Dona Filipa de Lencastre, após ter entregado as espadas aos infantes, seus filhos, em vésperas destes partirem para Ceuta, conforme narra Zuara nas Crónicas da Tomada de Ceuta, (Cap. 41) morrerá um mês depois, em 18 de Julho de 1415, vítima da peste negra[39]. Resumindo: os julgamentos apressados contra as classes sociais mais desfavorecidas que acusavam as vítimas de serem responsáveis pela sua própria condição eram fruto da imaginação criativa das classes sociais mais abastadas. A realidade era diferente: nenhuma classe social escapava a estas pestilências.

            A peste negra para além dos registos supramencionados ficou, igualmente ligada a outros importantíssimos acontecimentos da história de Portugal: em Lisboa, o líder da revolta popular - a revolução de 1383[40] -, que se revelou, ser D. João, Mestre da Ordem Militar de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I, aguentou um duro cerco de Lisboa que acabou por correr mal ao rei de Castela, pois se viu obrigado a retirar as suas tropas depois de o seu exército ter sido atacado pela peste[41]. Outro acontecimento relacionado com a peste negra, verificou-se no reinado de D. Duarte, na fracassada expedição  a Tânger, em que este morre, em 1438, vítima de peste[42].

A Europa e o renascimento.

Resta saber se as doenças infetocontagiosas terão sido uma causa ou um simples fator de aceleração de mudanças inevitáveis. Estas doenças transportaram consigo grande mudança nas mentalidades, nos sistemas de saúde pública, nas economias, nas políticas, nos modos de vida, nas técnicas e tecnologias, na literatura e na cultura em geral, entre muitas outras transformações. Estas doenças elevaram as taxas de mortalidade e contribuíram para alterarem nas populações a perceção quanto à proximidade da morte. As mortes provocaram um grande choque nos que sobreviveram. Se a privação inesperada de um ente querido abalou a fé e as práticas cristãs de muitas pessoas, trouxe igualmente consigo um renovado fervor religioso e um maior entendimento das omissões e dos pecados cometidos. A busca da salvação transmutou-se com os acontecimentos.

Ora este período, que conheceu tanta infelicidade e revelação profética relacionada com cataclismo em que as forças do mal vencem as forças do bem. Este apocalipse viu, também, nascer e florescer o humanismo e o desabrochar do Renascimento. Mas o Renascimento, como outras épocas históricas, foi um período complexo, contraditório, de transição e cheio de paradoxos. Ao mesmo tempo medieval e moderno, cristão e pagão, secular e sagrado, ciência e religião, o período foi, assim, um “simultâneo equilíbrio e síntese de muitos opostos"[43].

A idade Média foi o ventre que ajudou a expulsar do seu útero o Renascimento. A peste negra[44] gerou Decameron[45], Masaccio[46], o primeiro grande pintor do Renascimento italiano. Brunelleschi[47], o arquiteto genial que concluiria, em 1434 a cúpula, de Santa Maria del Fiore. A encantadora Ca' d'Oro de Veneza data da primeira metade do século XV. O retábulo do Cordeiro Místico, a maravilha de Gand, foi pintado por Van Eyck, pintor flamengo, entre 1413 e 1432. O século XV é a idade de Ouro da pintura flamenga. Quem admirar na Hofburg de Viena[48] os sumptuosos paramentos sacerdotais, utilizados no século XV na corte de Borgonha, para as cerimónias da ordem do Tosão de Ouro[49], interroga-se como tanta riqueza pode coexistir com tanta miséria[50]. Aparece,  ainda, o hospital, como casa de acolhimento de doentes, surgida já nos finais da Idade Média, inícios dos tempos modernos. Esta instituição hospitalar, para receber doentes infetados, era designada gafarias ou leprosarias, criadas pelos reis ou pelos municípios, devido aos repetidos surtos de peste. Já no último quartel do século XV, surgiram os hospitais para pestilentos[51]

Ao relembrar, neste texto, a virulência da peste negra e outros flagelos que mataram um número expressivo de pessoas, desejo contribuir para a necessária reflexão e, consequente, compreensão da existência humana quando atingida por trauma epidémico, o Covid-19. Uma maldição em constante transmutação. As epidemias e as quarentenas deixam as cidades repletas de fantasmas que alojam o silêncio e a ausência da vida pública. Nestes espaços despejados pela maldição, resta apenas o silêncio de um Deus que persiste em existir. Esta difícil experiência social difícil, como sequela trágica de um acontecimento epidémico, transfigura em solidão a nossa (própria) existência. Da tríade: “covid-19”, “isolamento social”, distanciamento social, resulta, para alguns de nós, uma quarta variável: a morte.

Como ficou demonstrado a peste negra, a sífilis, entre outras doenças infetocontagiosas, provocaram violências, a marginalização e ações estigmatizantes dos poderes instituídos. Mas podem suscitar, também, mesmo em “prisão domiciliária”, um pretexto para o desenvolvimento dos valores humanos e ampliar a (nossa) compaixão (para os religiosos), a (nossa) solidariedade em tempos de cólera, em tempos difíceis. A solidariedade com e para todos e todas as pessoas e profissionais que lutam no (nosso) SNS, colocando em risco a sua própria vida, para salvarem a minha, a tua a nossa vida. É um texto que se propõe contribuir, também para a necessária reflexão das presentes e futuras políticas de saúde pública e à tensão existente entre liberdade e proteção do indivíduo; é um texto que interroga: o ventre que ajudará a expulsar do seu útero o futuro. Que futuro?




[1] Citado por Bauman, 2008, p. 9)
[2] Cf. Bauman, 2008
[3] Koselleck, 1979 , p. 271
[4] Cf. Koselleck, 1979 , p. 15
[5] Os vírus são microorganismos compostos por proteínas e material genético que atingem diversos organismos e estão em toda a parte, são os organismos mais abundantes no nosso planeta, mas nem todos causam prejuízos ao ser humano. Alguns de nós adquirimo-los por contacto com um animal infetado ou através dos seus dejetos.
[6] As infeções víricas podem-se propagar-se por meio de um agente portador (ar, um inseto…) ou de maneira direta mediante o contacto físico com alguma pessoa infetada. O vírus como o da gripe afeta o sistema respiratório propaga-se através da tosse e dos espirros e pode contagiar pessoas que estão a cerca de um metro de distancia. Pode ser transmitido num transporte público e alastrar-se a uma grande cidade e começar uma enorme viagem.
[7] Infeções, como a varicela ou a malária, podem aparecer de forma recorrente num pais ou numa região e, com mais força, em determinadas épocas, durante anos e anos. São epidemias quando afetam uma quantidade controlada de pessoas numa região concreta durante períodos prolongados (país ou regiões).
[8] Fala-se em epidemia quando o número de infetados por doenças infeciosas aumenta de maneira repentina muito para além do que é normal. Podem ser consequência do clima ou de desastres naturais e só se estabelecendo um limite de deteção em função do número de novas infeções por habitante.
[9] Falamos de pandemia quando uma epidemia afeta ao mesmo tempo pessoas que habitam em lugares muito distantes umas das outras e sem se ter desenvolvidos algum tipo de imunidades, nem tratamentos. Nestes casos tornam-se  necessários a vigilância e a informação e comunicação permanentes entre os governos e os organismos internacionais de saúde, para determinarem a evolução da infeção. Em alguns casos, fecham-se localidades inteiras, suspendem-se voos internacionais fecham-se fronteiras e tomam-se medidas mais drásticas que podem incluir a do estado de emergência. A Organização Mundial da Saúde criou um regulamento Sanitário Internacional e normativos subscritos por 196 países, que estabelecem a possibilidade de declarar emergência em saúde pública e/ou ações internacionais coordenadas.
 [10] Giovanni Boccaccio (1348 e 1353). O livro é uma história que contém 100 contos narrados por um grupo de sete moças e três rapazes que se abrigam numa vila isolada de Florença para fugir da peste negra, que afligia a cidade.
[11] Cf. Loyn, 1990
[12] Foucault, 1977, p. 117
[13] Silva & Silva, 2009, p. 313
[14] Ibidem
[15] Júnior, 2001, 2ª ed., p. 36
[16]A peste negra como tema literário:
- Francesco Petrarca (1304 - 1374) contemporâneo e amigo de Boccaccio narrou nas suas epístolas familiares (Epistulae metricae) episódios da sua vida e, entre eles, a tragédia de sua mulher amada, Laura, quando encontrou o seu cadáver na madrugada de l 6 de abril de 1348 vítima da Peste negra.
- Albert Camus nasceu em Mondovi, Argélia em 7 de novembro de 1913. Era um franco-argelino.
Argélia era desde 1832 uma colónia Francesa. A Peste é una novela que o autor começou a escrever entre os 28 e 29 anos quando se radicou na cidade argelina de Orán, que é o local onde se desenrola a epidemia e que dá título a sua obra. A novela tem um conteúdo médico, sabiamente intercalado no texto para criar a necessária tensão no leitor; cada página incluiu uma novidade. Mas o que atrai a atenção do historiador de medicina é a exata descrição clínica da enfermidade epidémica, verdadeira história clínica relatada por um escritor não médico (Cf. Larrosa, 2005).
[17] Júnior, 2001, 2ª ed., p. 26
[18] Cf. Júnior, 2001, 2ª ed., p. 37
[19] Rodrigues, 2008, p. 114/115
[20] Sousa , 2013, p. 157
[21] Sousa , 2013, p. 213
[22] Sousa , 2013, p. 157
[23] Ibidem
[24]Cf. Santos, 2014
[25] Oliveira, 2015, p. 171
[26] Cf. Sousa , 2013, p. 234/35
[27] Cf. oliveira, 2015, p. 198
[28] Cf. Sousa , 2013, p. 238
[29] Oliveira, 2015, p. 158)
[30] Cf. Ariès & Duby, 1990, p. 589
[31] Cf. Oliveira, 2015
[32] Ibidem, 2015, p. 196
[33] O conjunto de três badaladas dadas pelo sino de uma igreja, para convocar os fiéis à oração da ave-maria; ângulos: oração, em latim, de saudação e prece à Virgem Maria e que se reza ao amanhecer, ao meio-dia e ao anoitecer. Oração que se inicia pelas palavras ave e Maria
[34] Dogma católico que proclama a união de três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo, formando um só Deus; o mistério da Santíssima Trindade.
[35] Cf. Oliveira, 2015, p. 209
[36] Cf. Coelho, 2006)
[37] Cf. Santos L. A., 1994
[38] Sousa , 2013, p. 246
[39] Cf. Almeida, Brochado, & Dinis, 1960, p. 152;  Cf. Rodrigues, 2008, p. 114/115
[40] Cf.Coelho A. B., 1981
[41] Dias & Ferreira, 2016, p. 38
[42] Dias & Ferreira, 2016, p. 42
[43] Cf.Rosa, 2012, p. 332
[44] As epidemias  são, ainda, responsáveis indiretas por muitos avanços. A partir de diversas epidemias emergiram medidas no domínio da saúde, entre outras, e que mudaram os nossos hábitos e costumes. Comportamentos e instituições que fazem parte da nossa vida quotidiana sem sabermos, muitas vezes, as suas origens. Os asilos foram criados para contender a lepra na Idade Média. Eram os sacerdotes que organizavam estes espaços, fiscalizados e inspecionados para isolarem os doentes e evitarem a propagação dos contágios. Este tipo de de espaços também foi usado para albergar mendigos e vagabundos. A quarentena criou-se para preservar a distância social e organizar territorialmente as populações para enfrentarem a peste negra no século XIV, obrigando, por isso,  os poderes instituídos a colocarem vigilantes nas ruas, inspetores nos bairros e autoridade administrativas nas cidades, que velavam pelo cumprimento das medidas adotadas. Por etapas e em distintos períodos a estas responsabilidades foram-se acrescentando outras e assim surgiu o que é hoje conhecido como autoridades policiais. As vacinas: a varíola (doença contagiosa aguda (oficialmente declarada extinta do planeta na década de 1970) matava muitas das pessoas contagiadas e durante a conquista da América dizimou uma grande parte da população. Graças a Edward Jenner e Louis Pasteur, que examinaram cientificamente as práticas antes usadas e as transformaram em vacinas. A aplicação generalizada das vacinas veio poupar milhares de vidas humanas. Os inseticidas. Muitas doenças transmitidas pelos mosquitos provocavam a malária e o dengue. Em 1939, Paul Muller, que descobriu as propriedades do DDT para acabar com os mosquitos transmissores da doença, contribuiu, assim, para a luta que se travou conta a epidemia do tifo. Mas os efeitos nocivos do DDT para a saúde e do meio ambiente levou à sua retirada, sendo hoje usado em situações muito reduzidas. Os Cemitérios: na Europa sepultavam-se os mortos dentro das igrejas ou perto desses templos causando, por isso, o aparecimento de doenças e epidemias. A construção de cemitérios aparece no seguimento destes acontecimentos com regulamentos sanitários mais restritos de forma a evitar qualquer doença. As pandemias contribuíram para a necessária reflexão das condições de vida dos povos e para a aparecimento de leis e usos que contribuem para que as nossas vidas sejam mais seguras.
[45] Escrita entre 1348 e 1353, esta obra é considerada como a obra-prima de Giovanni Boccaccio.
[46] Importante pintor florentino (1401-1428) dos inícios do Renascimento.

[47] Filippo Brunelleschi - Arquiteto e escultor italiano (1377-1446), celebrizou-se na construção de cúpulas. Foi um dos primeiros arquitetos italianos do Renascimento. Conhecia a fundo os métodos romanos de edificação e divulgou várias soluções arquitetónicas que fizeram escola e foram fundamentais na arquitetura renascentista.
[48] O Hofburg, ou Palácio Imperial de Hofburg, é um grandioso palácio em Viena, Áustria. Tem as suas origens num castelo fortaleza medieval, datado do século XIII.
[49] Tosão de Ouro - Ordem de cavalaria, instituída na França pelo rei Filipe, o Bom (1396-1467), por ocasião do seu casamento com D. Isabel de Portugal, filha de D. João I, 1357-1433.
[50]Delumeau, 1994, p. 78-79
[51] Cf. Azevedo, 2000



BIBLIOGRAFIA
Almeida, M. L., Brochado, I. F., & Dinis, A. J. (1960). Monumenta Henricina vol. I. Coimbra: Conissão Executiva das comemorações do V Centenário da Morte do Infante D.Hentique.
Ariès, P., & Duby, G. (1990). História da Vida Privada da Europa Feudal ao Renascimento vol.2 . Lisboa: Círculo dos Leitores.
Azevedo, C. M. (2000). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: CífculoLeitores.
Bauman, Z. ( 2008). La Sociedad Contemporánea y Sus Temores. - 1ª ed. . Buenos Aires: Paidós.
Coelho, A. B. (1981). A Revolução de1383. Lisboa : Editorial Caminho.
Coelho, A. B. (2006). Ruas e Gentes na Cidade na Lisboa Quinhentista. Lisboa : Caminho.
Delumeau, J. (1994). A Civilização do Renascimento Vol.I. Lisboa: Editora Estampa.
Dias, P., & Ferreira, D. ( 2016). História de Portugal. Lisboa : Verso da Kapa • Edição de Livros, Lda.
Foucault, M. ( 1977). O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária.
Júnior, H. F. (2001, 2ª ed.). A Idade Média, Nascimento do Ocidente. São Paulo: editora brasiliense.
Koselleck, R. ( 1979 ). O Futuro Passado - Contribuição à Semântica dos tempos Históricos . Rio de Janeiro : Contraponto Editora.
Larrosa, A. S. (2005). História de la Medicina. Madrid: Salud Militar – Vol.27 Nº 1 – Abril.
Loyn, H. R. (1990 ). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Oliveira, A. R. (2015). O Dia-a-Dia Em Portugal na Idade Média. Lisboa: A Esfera dos Livros.
Pontes , D. (2012 ). O cerco da peste no Porto - Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899. PORTO : Dissertação de Mestrado de História Contemporânea FLP.
Rodrigues, T. F. (2008). História da população portuguesa. Das longas permanências à conquista da modernidade . Porto : Edições Afrontamento .
Rosa, C. A. (2012). História da Ciência da Antiguidade ao Renascimento Científico. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.
Santos, I. A. (2014). Conflitos Bioéticos na Qarentena Humana. BRASÍLIA 2014: Tese de Mestrado Bioética.
Santos, L. A. ( 1994 ). Um Século de Cólera: Itinerário do Medo . Rio de Janeiro: PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva vol. 4, nº 1.
Silva, M. H., & Silva, K. V. (2009). Dicionário de conceitos Históricos. São Paulo : Editora Contexto .
Sousa , G. (2013). História da Medicina Portuguesa Durante a Expansão. Lisboa: Circulo dos Leitores.
Um Século de Cólera: Itinerário do Medo . PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva.


segunda-feira, março 09, 2020

As carquejeiras durante o séc. XIX início do séc. XX



Carquejeiras - As Escravas do Porto - Documentários - RTP
                                    https://www.rtp.pt/programa/tv/p38527
No passado dia 8 de Março, pelas 19,42 horas, foi exibido um documentário sobre “As carquejeiras que durante o séc. XIX início do séc. XX faziam chegar à cidade a carqueja que descarregavam dos barcos acostados às margens do Douro.” 

Este trabalho era desenvolvido fundamentalmente por mulheres e o documentário pretende ser uma “Homenagem a mulheres esquecidas que desempenharam uma tarefa fundamental para o desenvolvimento da cidade do Porto.” Este “drama silencioso e silenciado destas escravas do Porto”, aqui apresentado, demonstra as desgraças e as desventuras de quem este trabalho exerceu. Trabalho imposto pela miséria, pela fome, e desqualificação social destas mulheres e das suas famílias. E, sobretudo, pela manifesta indiferença, social e comunitária a que eram sujeitas. É, neste contexto de exercício de uma profissão, que a palavra trabalho mais se aproxima da sua etimologia: (do latim tripalìum) '”instrumento de tortura”. Na realidade “Estas "Mulheres-escravas", dobradas pelo peso da carqueja e da sua condição social, calcorreavam calçadas, ruas, vielas e ruelas da cidade do Porto, percorrendo distâncias de cinco quilómetros ou mais, no desempenho de um árduo trabalho que permitia que se cozesse pão, se acendessem fogões a lenha ou se aquecessem as lareiras das casas mais abastadas da cidade nevoenta e fria.”

As fontes de energia

Jardim da Estrela - Lisboa
Se recuarmos, não mais de duzentos anos, constatamos que as fontes de energia da sociedade portuguesa provinham de fontes de energia que hoje consideramos ecologicamente prejudiciais, nalguns casos extintas ou pouco importantes para produzir bens e serviços que respondam as nossas necessidades. Mas, a lenha, o vento e a água continuam, cada vez mais, a ser necessários.

As carquejeiras existiam no Porto em Lisboa e noutras cidades. O abastecimento de lenha e carvão vegetal às cidades do Porto, de Lisboa, vilas e aldeias fez emergir novas formas de trabalho: o dono das propriedades, o carvoeiro ou mateiro (encarregado de zelar pelas matas ou florestas), os transportadores de lenha que o poderiam fazer em barcos (barqueiros) e/ou utilizando animais, os proprietários de estâncias, carvoarias e tendas, os revendedores e atravessadores (intermediário). O abastecimento das cidades faz emergir um autêntico mercado energético do qual deriva uma turba de agentes e interesses. Este mercado é regulado pelas Câmaras Municipais e pelo Rei. É, neste contexto, que surgem, entre outras profissões, as mulheres carquejeiras e homens que também existem, sobretudo na cidade de Lisboa, que fazem o trabalho de transporte da carqueja pelas cidades, vilas e aldeias.  


quarta-feira, setembro 05, 2012


Diferença: construção social        
 
(Carlos Jorge, Doutor em Sociologia, Especialidade: Relações Interculturais)

 

Desde que as sociedades existem e desenvolvem relações entre si a problemática da diferença existe enquanto fator de demarcação. Não é provável, pois, que exista uma cultura tão isolada que não tenha nenhuma espécie de relação com outras. Se isto é um axioma, dele decorre que a perceção da alteridade é um fenómeno universal e, consequentemente, a diferença é uma constante na história da humanidade.

 

A expansão das civilizações greco-romanas, os descobrimentos ibéricos, a formação dos grandes impérios coloniais e, mais recentemente, a globalização são momentos particularmente interessantes para compreender o modo imagético como o Ocidente construiu imagens poderosas para enclausurar o Outro em posições de inferioridade. A domesticação das diferenças é um legado da Antiguidade Grega. O conceito de bárbaro começou por designar simplesmente os povos não gregos, os considerados estrangeiros, os metecos, vindo mais tarde a considerar como bárbaros todos os povos diferentes deles, por estes não expressarem consideração pela polis, pela língua helénica e pelos ideais literários e artísticos das cidades-estados (cf. Mossé, [1993] 1999).

 

A partir do século XVIII, a leitura das narrativas do passado adquire uma nova dimensão. A ilustração passa a compreender a história em termos do desenvolvimento do espírito humano enfatizando a explicação das desigualdades a partir da natureza. O selvagem, como singularidade exótica, transmuta-se em homem dos primórdios da humanidade, o primitivo. A conceção de natureza humana universal ou a noção de humanidade, descrita por Lévi-Strauss ([1952] 2006), faz desaparecer a ideia de selvagem como construção exótica. As novas conceções admitem que as diferenças de costumes podem ser lidas como um grande mapa da humanidade e, consequentemente, explicar as várias etapas da evolução humana.

 

Até ao início da segunda Guerra Mundial, diversos biólogos, naturalistas, médicos, entre outros, contribuíram com os seus estudos para a definição conceptual das diferenças humanas em termos de raça, adquirindo a cultura uma nova importância. A racialização das diferenças foi um processo que se construiu e desenvolveu, sobretudo, em contextos coloniais. A distância cultural que separa o nativo da metrópole faz emergir uma cultura detentora de especificidades própria. É homogénea, com hábitos e valores simbólicos sustentados e não comparáveis: a racialização transmuta-se progressivamente, num processo de etnicização (cf. Fernandes, 1998; Machado F. L, 2002). Com este processo, que sucede com o fim da segunda Guerra Mundial e da ideologia nazi, que defendia a superioridade e a pureza racial, as explicações pela raça entram em declínio. Para isso, tem contribuído, em particular, a UNESCO que convidou reputados investigadores de diferentes áreas do conhecimento científico para construírem uma nova abordagem desta problemática. As referências à raça desaparecem substituindo-a por referências às diferenças étnicas e culturais. (Machado F. L., 2002: 327).

 

As diferenças manifestam-se através de declarações de pertença e de não pertença, de inclusão e de exclusão: “é suficiente para ‘nós’ estabelecer essas fronteiras na nossa mente; por conseguinte, ‘eles’ tornam-se ‘eles’, e tanto o território como a mentalidade ‘deles’ são referidos como sendo diferentes dos “nossos” (Said, 1997: 62). A diferença não é neutra, razão pela qual desenvolve tensões e conflitos, receios e inquietações (Wieviorka, [1992]1995; Touraine, 1998). A diferenciação apoia-se nas particularidades atribuídas de forma imutável aos grupos e generalizadas a todos os seus membros (Amâncio, 1994). No entanto, estas características “são mutáveis e não definitivas, são abertas e não fechadas” (Machado F. L., 2002: 32 ), podem ser constantemente reinventadas e reinterpretadas (Herskovits, [1948]1952, citado por Cuche, 1999: 170), e permitem a emergência de culturas sincréticas (Cuche, 1999: 82; Robertson, 1992: 66), mestiças (Wieviorka, 2002: 80), integrando num mesmo sistema elementos tomados de empréstimo doutras culturas (Sapir, 1949, citado por Cuche: 61).

 

A construção da diferença não era neutra, estava associada à desigualdade e à discriminação. Este processamento de diferenciação simbólica manifesta-se na desumanização do outro (Amâncio, 1994), tendo sido “justificada pela Igreja e pelo Estado na base de que as pessoas têm distintas naturezas, e algumas naturezas são melhores que outras” (Young, 2000: 264). Na tradição, explica Iris Young, a lei e as normas sociais definiam os direitos, os privilégios e obrigações de maneira diferente nos diversos grupos que se distinguiam por características de sexo, raça, religião, classe social ou pelo exercício da profissionalidade/ocupação.

 

Young considera que, com a emergência do iluminismo, se anuncia uma nova conceção revolucionária da humanidade e da sociedade: todas as pessoas são iguais, na medida em que todas têm uma capacidade para a razão e para o sentido moral. Os ideais de liberdade e igualdade, defendidos pelo iluminismo, inspiraram e inspiram movimentos contra a opressão e a dominação, cujo êxito permitiu que se criassem valores e instituições sociais que constituem o alicerce das sociedades contemporâneas.

 

Young admite que é necessário insistir na igualdade e na liberdade pelo facto de a diferença entre grupos continuar a existir, não se podendo, por isso, ignorar estas diferenças porque elas têm consequências opressivas em três sentidos: em primeiro lugar, a cegueira frente à diferença põe em situação de desvantagem os grupos cuja experiência cultural e as capacidades socializadas diferem das que têm os grupos privilegiados; em segundo lugar, o ideal de uma humanidade universal sem diferenças de grupos sociais tende a que sejam os grupos dominantes a definir as normas da humanidade em geral; em terceiro lugar, estes grupos que se desviam de um critério, supostamente, neutral tendem a uma desvalorização internalizada por parte dos membros desses mesmos grupos (cf. Young, 2000: 276-278).

 

Os diferentes grupos compartilham algumas similaridades em alguns aspetos e sempre compartilham potencialmente alguns atributos, experiências e objetivos. A alternativa a um significado de diferença, que essencializa e estigmatiza, é uma compreensão da diferença como especificidade e variação. A compreensão relacional da diferença cria uma oportunidade para refletir acerca da identidade e, para se compreender igualmente, a necessidade de construção de novos significados para a identidade de grupo (cf. Young, 2000: 288-290).

 

 

Referencias Bibliográficas

Amâncio, L. (1994). A Construção Social da Diferença. Porto: Edições Afrontamento.

Cuche, D. (1999). A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Lisboa: Fim de Século Edições.

Lévi-strauss, C. ([1952] 2006). Raça e História. Lisboa: Editorial Presença.

Machado, F. L. (2002). Contrastes e Continuidades - Migrações, Etnicidade e Integração dos Guineenses em Portugal. Lisboa: Celta Editora.

Mossé, C. ([1993] 1999). O Cidadão na Grécia Antiga. Lisboa: Edições 70.

Said, E. W. (1997). Orientalismo. Lisboa: Livros Cotovia.

Touraine, A. (1998). Iguais e Diferentes - Podemos Viver Juntos. Lisboa: Instituto Piaget.

Wieviorka, M. ([1992]1995). Racismo e Modernidade. Lisboa: Bertrand Editora.

Young, I. M. (2000). La Justicia y la Política de la Diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra.

 

sexta-feira, janeiro 27, 2012

Carta dirigida à Senhora Presidente do Conselho Geral

                            À Presidente do Conselho Geral Transitório
                            do AERF – Dr.ª. Maria Filipa Baganha


Ex.ª Senhora Presidente,

No passado dia 18 de Janeiro, pelas 17.00 horas, na sala da Associação de Pais da escola sede do Agrupamento, fui entrevistado pela Comissão do Conselho Geral responsável pela apreciação das candidaturas ao lugar de Diretor. Nesta entrevista, registaram-se dois acontecimentos que me induziram a escrever-lhe.

1º – Problema – A primeira pergunta que a Senhora Presidente me fez foi: sabe qual é o número de professores e alunos existentes no Agrupamento?

Esclarecimento – Esta pergunta tende a beneficiar um dos candidatos ao cargo de Diretor, a candidata Maria José Ascensão. O exercício do cargo de Presidente da C.A.P. do AERF permite-lhe ter acesso a informação privilegiada. Não é possível conhecer o que não é do domínio público. Até à data da entrevista não estava publicada no site ou em qualquer outro local da sede do Agrupamento a informação que me foi solicitada. Como dar uma resposta clara, precisa e concisa a uma pergunta para a qual não existe informação disponível?

Aconselho – Esta questão (e outras semelhantes, no caso de existirem) deverá, pelas razões supramencionadas, ser retirada da grelha de avaliação dos candidatos a Diretor do AERF pelas razões expressas.

2º – Problema – Já no final da minha entrevista, uma das representantes no Conselho Geral da Comunidade Local/Museu Nacional Soares dos Reis, a Senhora Maria João Vasconcelos, teceu a seguinte consideração: … o que disse acerca do orçamento não é assim!

Esclarecimento – As considerações e/ou propostas que fiz acerca do orçamento privativo do AERF, nomeadamente no que se refere à terminologia e/ou à utilização dos recursos públicos financeiros contemplados no orçamento privativo do AERF, assim como a classificação económica das despesas públicas que utilizei na minha argumentação, como foi o caso das Despesas de capital e Despesas correntes (aquisições de serviço que contemplam, entre outros, os consumos de secretaria) provêm do que está plasmado no Decreto-lei nº 26/2002 de 14 de Fevereiro, assim como de numerosíssimas circulares e ofícios-circulares que o Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Educação remete para as Escolas/Agrupamento de Escolas relativas às Despesas de Capital e Despesas Correntes (classificações económicas 06.02.03.C0.00.00 e 11.02.00.00.00). As alterações orçamentais entre vários blocos de despesas são da competência do próprio Agrupamento, como referem numerosíssimos documentos oficiais.

Aconselho – Os membros do Conselho Geral não são obrigados a dominar e/ou conhecer em pormenor as terminologias usadas nos orçamentos privativos e as classificações económicas das despesas públicas. É-lhes exigido, no entanto, alguma cautela nas afirmações que fazem para não prejudicar, ainda que involuntariamente, os entrevistados. A leitura do no Decreto-lei nº 26/2002 de 14 de Fevereiro, bem como muito contribuirá para o esclarecimento desta questão.

Ex.ª Senhora Presidente do Conselho Geral Provisório do AERF

Solicito, p.f., que seja dado conhecimento desta minha carta à Comissão do Conselho Geral responsável pela apreciação das candidaturas ao lugar de Diretor, bem como ao próprio Conselho Geral.

Porto, 19 de Janeiro de 2012


                                                           O Candidato a Diretor do AERF
                  
                                                                          Carlos Jorge dos Santos Sousa

Candidatura a Director do AERF - Projeto de Intervenção

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Perguntas e respostas acerca da educação inclusiva e dos normativos legais: o reino do faz de conta?!

O que é a educação inclusiva? É a integração das crianças aleijadas, incapacitadas, inválidas, na turma normal?

Não, não é! Vejamos, em primeiro lugar, a diferença que existe entre educação inclusiva e a integração. O conceito de integração está de uma forma geral associado à necessidade de retirar as crianças e jovens com deficiências das instituições de ensino especial permitindo-lhes a adaptação a um novo espaço e a possibilidade de novos relacionamentos, de convívio, socialização e aprendizagem. As práticas pedagógicas são, igualmente, transportadas para a escola regular. O programa educativo individual é desenhado pelo professor de educação especial de acordo com as características do aluno. A educação apropriada, os serviços adequados e, respectiva, modalidades de atendimento caracterizam a educação integradora. Temos, pois, uma integração que se caracteriza por uma participação tutelada numa escola com valores próprios à qual o aluno terá de se adaptar.
A educação inclusiva (EI) remete para um outro paradigma educativo: todos os alunos com ou sem deficiência passam a interagir num mesmo contexto educativo, em consonância com os interesses, as características e necessidades de um ensino e aprendizagem cooperativas. A integração/educação
especial
assenta numa perspectiva centrada no aluno; a educação escolar/educação inclusiva assenta numa perspectiva centrada no currículo.


Os termos usados na pergunta (crianças aleijadas, incapacitadas, inválidas, turma normal) foram utilizados até aos anos 80. A partir de 1981, começa-se, por influência do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, a escrever e a falar utilizando a expressão pessoa deficiência. Quanto à turma normal ela deve ser substituída por classe/turma comum ou classe/turma regular.

Não lhe parece que o uso das palavras é uma mera questão de semântica? Não será mais importante saber se existe em Portugal legislação que garanta um ensino e aprendizagem cooperativo, como refere?

Não é uma mera questão semântica ou sem interesse. É importante que os principais agentes educativos, como é o caso dos educadores e professores, falem e escrevam evitando os preconceitos, os estigmas e estereótipos que sempre caracterizaram a nossa relação com as pessoas diferentes. Deveremos desencorajar as práticas discriminatórias ancoradas em conceitos obsoletos, em ideias equivocas e em informações inexactas que inconscientemente reforçam e perpetuam a exclusão e não cooperam no sentido da necessária mudança de paradigma: da integração para a inclusão.  

Sim, garante! Em Portugal a legislação garante uma educação inclusiva. O Decreto-Lei n.º 3/2008 de 7 de Janeiro, entre outros, vem activar os necessários apoios especializados às crianças e jovens com necessidades educativas especiais.

Poderemos, então, afirmar que todas as crianças e jovens com necessidades educativas especiais
(NEE) encontram equidade educativa na escola democrática e inclusiva existente no sistema de ensino português?


Não, tal afirmação não corresponde à realidade! De facto os nossos principais problemas não estão relacionados com a (abundante) produção legislativa, mas sim, com as contradições existentes entre a letra da legislação, os recursos e as práticas seguidas nas escolas e agrupamentos de escolas.  ideologia da inclusão está presente nos discursos, nos programas, nos projectos políticos e no imaginário e não nas possibilidades concretas e quotidianas da nossa vida escolar.

Possuímos legislação adequada, escolas de referência, instalações modernas e bem equipadas
e, mesmo assim, não proporcionamos aos (nossos) alunos, nomeadamente aos alunos com NNE, um ensino inclusivo?


Não, muitas das escolas e agrupamentos de escolas não asseguram um ensino que garanta a permanência, os princípios da justiça e da solidariedade social, da não discriminação e do combate à exclusão social, da igualdade de oportunidades no acesso e sucesso educativo, como refere o artigo 2º do DL n.º 3/2008 de 7 de Janeiro.

De facto muitas das (nossas) escolas e agrupamento de escolas possuem instalações modernas e estão bem equipadas. Mas falta, em muitos casos, os recursos humanos qualificados, (in)formados e, consequentemente, com competências para  dar respostas às necessidades dos alunos com NNE. As escolas e agrupamento de escolas não adoptam modelos inclusivos. Muitas continuam a funcionar com base num paradigma educativo centrado na integração.

Como poderemos transpor os obstáculos que entravam o desenvolvimento de uma educação inclusiva?

Não existem respostas simples e prontas a usar! Poderemos, no entanto, tecer algumas considerações que poderão contribuir para desatar alguns dos nós desta problemática. Os recursos humanos, já referenciados, são fundamentais: formação inicial e contínua dos educadores e dos professores é, em geral, a resposta clássica para esta e outras questões educativas. Mas existem outras.

Que outras?

Em primeiro lugar o respeito pelos normativos existentes. É fundamental que as turmas que tenham alunos com NEE não tenham mais de 20 alunos, como está embelecido no despacho 14 026/2007; que os serviços apoio de educação especial assegurem atempadamente e eficazmente os apoios necessários; que a gestão da sala de aula seja feita tendo em consideração que todos os alunos
são diferentes
e não apenas o aluno com NEE; que a gestão e administração escolar criem condições efectivas de apoio e dinamização de procedimentos facilitadoras da igualdade de oportunidades no acesso e sucesso educativo de todos os alunos de forma a contribuir para uma cultura que sedimente valores e práticas que se aproximam da educação inclusiva o que pressupõe (in)formação; definição de procedimentos no Projecto Educativo, nos planos anuais e plurianuais de actividades e nas metas e estratégias de aprendizagem.


Justifica-se que os alunos com NEE sejam apoiados, nalgumas disciplina, fora do contexto da sala de aula/turma em que estão integrados?

Não, não se justifica! A elaboração de um programa educativo individual, elaborado pelo director de turma, docente de educação especial e o encarregado de educação deverá contemplar as adequações curriculares necessárias. Estas adequações curriculares, que não ponham em causa as competências
essências e terminais da disciplina (conforme ponto nº 1 do artigo 18º do DL n.º 3/2008 de 7 de Janeiro), são leccionadas, sempre (!), em contexto de sala de aula/turma conforme a lei referenciada.


A educação inclusiva é da responsabilidade da escola e, pelos vistos, a escola não responde de forma satisfatória. Estamos numa encruzilhada?

Não, a educação inclusiva não é somente da responsabilidade da escola! É uma responsabilidade da sociedade, de todos nós. A sociedade terá de se adaptar, cada um de nós terá de cooperar, ninguém poderá ficar fora!


domingo, fevereiro 13, 2011



Perguntas e respostas acerca da ADD
(Avaliação de Desempenho Docente)

Quando há lugar à observação de aulas?



De acordo com Decreto Regulamentar 2/2010, artigo 9º, ponto 1, A observação de aulas é facultativa, só tendo lugar a requerimento dos interessados.
Mas é, igualmente, obrigatória (de acordo com o ponto 2) para:
a) Obtenção das menções qualitativas de Muito bom e Excelente;
b) Progressão ao 3.º e 5.º escalão da carreira, nos termos estabelecidos no n.º 3 do artigo 37.º do ECD.
3 — A observação abrange, pelo menos, duas aulas leccionadas pelo avaliado em cada ano lectivo.
4 — Para efeitos do disposto no n.º 2, os procedimentos a adoptar sempre que, por força do exercício de cargos ou funções, não possa haver lugar a observação de aulas, são os estabelecidos por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da Administração Pública e da educação.

Os Relatores e Coordenadores para obtenção das menções qualitativas de Muito bom e Excelente necessitam de observação de aulas?

O ponto 4 do artigo 9º refere os procedimentos a adoptar sempre que, por força do exercício de cargos ou funções, não possa haver lugar a observação de aulas. Os relatores e coordenadores poderiam ser incluídos neste ponto mas, vejamos o que foi estabelecido pela portaria 926/2010 de 20 de Setembro:
Artigo 1.º
Objecto
1 — A presente portaria estabelece os procedimentos a adoptar sempre que, por força do exercício de cargos ou funções, não possa haver lugar à observação de aulas prevista no artigo 9.º do Decreto Regulamentar n.º 2/2010, de 23 de Junho.
2 — Para os efeitos do disposto na presente portaria, entende-se por observação de aulas aquela que incide sobre o desempenho docente em contextos de ensino-aprendizagem através de efectiva interacção entre docente e criança ou aluno, incluindo as situações específicas dos professores bibliotecários e dos docentes de intervenção precoce, de apoio educativo, de educação especial e de Formação de adultos.


Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
1 — O disposto na presente portaria aplica-se aos docentes em licença sabática, em regime de equiparação a bolseiro a tempo inteiro e aos que se encontram no exercício de cargos ou funções fora do estabelecimento de educação ou de ensino e que, por esse motivo, não desenvolvem Interacção no âmbito do ensino -aprendizagem com crianças ou alunos.

Então a pergunta permanece: Os Relatores e Coordenadores para obtenção das menções qualitativas de Muito bom e Excelente necessitam de observação de aulas?

De acordo com o Decreto Regulamentar 2/2010, artigo 9º, ponto, artigo 9º os Relatores e Coordenadores terão de pedir observação de aulas para obtenção das referidas menções!

Em muitas escolas/A.E. os Relatores e Coordenadores consideraram que o artigo 28 º e 29 º do Decreto Regulamentar 2/2010 permitem a obtenção das menções qualitativas de Muito bom e Excelente sem necessitarem de observação de aulas?

De facto, estes dois artigos conjugados com o artigo 45º do ECD dão-nos a entender que os professores Relatores e Coordenadores não necessitarem de aulas observadas. Mas não nos dizem, de forma clara, precisa e concisa, se aos mesmos é permitida a obtenção das menções qualitativas de Muito bom e Excelente sem a observação de aulas que o artigo 9º determina. A questão que se nos se coloca: são ou não necessárias aulas observadas para os professores que pretendam ir para além do bom? O Ministério da Educação tem de clarificar esta questão e acabar com as dúvidas existentes!

O professor avaliado é obrigado a organizar um dossier individual durante o processo da Avaliação de Desempenho Docente?

Não, não é obrigado! O critério de apresentação ou não de um dossier individual do professor é da inteira responsabilidade do mesmo. O Artigo 17.º ponto 2 do Decreto Regulamentar 2/2010 é muito claro: A auto-avaliação é obrigatória e concretiza-se através da elaboração de um relatório a entregar ao relator em momento anterior ao preenchimento, por este, da proposta de ficha de avaliação global. Se analisarmos o despacho 14420/2101 de 15 de Setembro constatamos que: ponto 2 — O relatório de auto‑avaliação deve ser redigido de forma clara, sucinta e objectiva, não podendo exceder seis páginas A4.

Mas neste Relatório de Auto-avaliação o professor poderá, ainda, anexar documentos relevantes para a apreciação que não constem no seu processo individual?

Sim! Pode anexar documentos que possibilitem mobilizar o mínimo de duas e o máximo de quatro evidências que contribuam, segundo o despacho 14420/2101 de 15 de Setembro, para a sua avaliação de desempenho. Mas o que o professor não pode, em nenhuma circunstância, é exceder a seis pais A4 que o mesmo despacho lhe impõe.


Os Professores que reúnam condições para a aposentação devem ser avaliados?

Não! Todos os docentes que solicitaram a respectiva aposentação não necessitam de ser avaliados, segundo o Artigo 12.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2009 de 5 de Janeiro. Mas, devem apresentar um requerimento neste sentido ao presidente do conselho executivo ou director, para serem dispensados da respectiva avaliação.

A avaliação de desempenho docente pressupõe, de acordo com o Decreto Regulamentar 2/2010 e o Decreto-lei n.º 75/2010, de 23 de Junho, a existência de um quadro de referência externo e interno que dão sustentabilidade à mesma. Como proceder no caso onde este quadro de referências não existe ou não está totalmente assegurado?

É verdade! A nível externo deveremos ter como referências as Metas de Aprendizagem para o Ensino Básico; a nível interno deveremos ter como referencial de avaliação os Objectivos e metas fixados: no Projecto Educativo de Escola; no Plano Plurianual de Actividades; no Projecto Curricular de Escola e, por fim, no Projecto Curricular de Turma. A pergunta é correcta: como proceder nos casos em que estes referenciais não estão assegurados?

Carlos Jorge

quinta-feira, abril 30, 2009

“Conta-me como foi”: o estatuto do aluno.

Era o alvorecer de uma nova década. Eu teria pouco mais de 15 anos, e o alvorecer mais importante das últimas décadas estava ainda na incubadora da história e nas contradições e tensões sociais que, então, se viviam. A escola que frequentava era mista. O edifício era um ícone da tipologia que caracterizava as construções do Estado Novo; a gestão e administração escolar não fugiam ao controle severo da ideologia que sustentava o regime: era o tempo do Estado Novo e do Director Escolar!

A escola: entrávamos na porta principal do edifício e, de imediato, ingressávamos num enorme hall, que demarcava as possibilidades de circulação no seu interior e que, por sua vez, impedia o acesso a dois corredores que permitiam a circulação pelos três pisos existentes: pelo corredor do lado direito estavam autorizadas a circular as raparigas; o do lado esquerdo destinava-se à circulação dos rapazes mas, logo que nele se entrava, deparávamo-nos com um bengaleiro, que era uti­lizado por ambos. O espaço ocupado pelo bengaleiro era um dos três locais onde rapa­zes e raparigas se encontravam; os outros dois, eram o bar e a cantina. Cruzávamo-nos esporadicamente nalguns corredores.

Vestíamos calças com boca-de-sino, camisolas de gola alta e camisas muito justas ao corpo; calçávamos sapatos com saltos e solas que chegavam, nalguns casos, a atingir os 2 cm de altura. Os rapazes usavam os cabelos muito compridos e as raparigas curtíssi­mas minisaias e shorts. Em algumas escolas, os Directores mandavam/obri­ga­vam os jovens guedelhudos a cortar o cabelo; as raparigas a cobrirem, com as batas brancas, que, no caso da minha escola, eram de uso obrigatório, as pernas desnudadas.

Recordo os tempos em que uma professora de contabilidade mandava as raparigas à casa de banho lavar a cara pelo facto de terem aplicado um pouco de rímel nos olhos, base na cara ou batom nos lábios. Recordo que a mesma professora chamava algumas das suas alunas, mandava-as subir para um estrado e voltar-se para as colegas, para, em seguida, as questionar e criticar por as ter visto de mão dada com um rapaz, em muitos casos, também aluno da escola, nas proximidades da entrada principal ou perto da escola. Não esqueço aquele momento em que eu, o Zé e o Zambujal (alcunha porque era tratado por ser dessa localidade) acordámos encarar a nossa professora de contabilidade, entre outras razões, pelo facto, de não consentir que saíssemos no intervalo das suas aulas, que eram, sempre, de dois tempos seguidos, nem autorizar deslocações à casa de banho, fosse por que razão fosse, desde que tivéssemos entrado na aula: o Zambujal foi o primeiro a levantar-se e a pedir autorização para se deslocar à casa de banho, e a resposta não se fez esperar: sabes que não! O Zé, assim que a professora disse que não ao Zambujal, levantou-se e, com firmeza e coragem, que não disfarçavam o receio, pediu autorização para ir à casa de banho. Não ouviste o que disse ao teu colega, retorquiu a professora. Foi num ápice que me levantei e com uma terrível e sufocante aflição pedi licença para ir à casa de banho. O estrondo do silêncio absoluto fez-se sentir na sala. Por pouco não fiz ali o que pretendia fazer na casa de banho. Tremia como varas verdes, como jamais havia tremido! Naqueles prolongadíssimos minutos, que pareciam horas, mantive-me de pé. A professora, pelo que sabíamos, jamais tinha sido confrontada: era uma mulher assustadora, antipática, e detestada pelo(a)s aluno(a)s, disse: estão combinados!

Antes da nossa subversiva acção, dialogámos sobre as possíveis consequências do nosso acto mas, mesmo com receio das implicações de tal afronta, decidimos avançar. Era uma época de contestação à tradição, à autoridade, um tempo de questionamento. Passámos a ter intervalo na aula de contabilidade e disciplinarmente nada nos aconteceu. Tivemos sorte!

Esta história que partilho com todos vós, em início do século XXI, pode parecer-vos ridícula. Alguns de vós tão-pouco imaginariam que tal pudesse ter ocorrido, mas, se conversarem com alguma(n)s d(a)os professor(a)es que foram estudantes nas escolas/liceus no início da década setenta do século XX, descobrirão, com ela(e)s, tantas outras estórias semelhantes à narrada ou, noutros casos, muito mais graves, como aqueles em que os jovens eram compulsivamente enviados para a guerra colonial pela simples razão de imaginarem a sociedade em que viviam de forma distinta da do Estado Novo. Nessa época, o ensino e educação estavam compartimentados nas escolas técnicas e nos liceus. As escolas técnicas tinham como objectivo formar quadros intermédios e os liceus os quadros superiores. Acontecia muitas vezes que os jovens fintavam o destino que a escola lhes conferia, tornando-se, os estudantes do ensino técnico, quadros superiores, e os de liceu, quadros intermédios. O destino pode ser sempre fintado desde que a tal estejamos dispostos.

Vivíamos na primavera Marcelista (designação usada para reflectir a onda de esperança, para alguns, suscitada pela política do então Presidente do Conselho Marcelo Caetano, na primeira fase do seu Governo (1968-1970); a ideia de uma escola (para todos) de massas emergia com a reforma proposta pelo então Ministro da Educação Prof. José Veiga Simão e que se consubstanciava em dois importantes documentos: o Projecto do Sistema Escolar e as Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior. A reforma de Veiga Simão tinha como pressuposto fundamental a harmonização das classes, a resolução de conflitos e tensões e, consequentemente, a distribuição de bens simbólicos que substituíssem a escassez dos bens económicos e facilitassem a mobilidade social (cf. Stoer, 1983).

O Estado Novo desenvolveu diversas políticas educativas desde a aprovação da constituição de 1933 (institucionalização da ditadura Salazarista): numa primeira fase, estas políticas, assentavam em diversas trilogias: uma inculcava a ideologia nacionalista, a designada trilogia da educação nacional - Deus, Pátria e Família; outra, que estabelecia a trilogia da autoridade – Pai, patrão e professor; e, por fim, a trilogia do próprio regime político que consagrava o autoritarismo, corporativismo e colonia­lis­mo. A Escola era a sagrada oficina das almas, inculcava a exaltação patriótica, a mitificação dos valores históricos e a supremacia da raça lusitana, a defesa dos valores da civilização cristã, a exaltação da disciplina, da obediência e do cumprimento do dever como condição necessária para o progresso e a defesa da pátria. A Escola prepa­rava para que os educandos tivessem a vontade forte e disciplinada. Numa segunda fase, a educação passou a assumir um papel mais ligado à economia.

O 25 de Abril: o PREC (Período Revolucionário em Curso)

No alvorecer do dia 25 de Abril de 1974, jovens capitães do M.F.A. (Movimento das Forças Armadas), derrubaram a ditadura e as portas que Abril abriu, como escreverá mais tarde o poeta José Carlos Ary dos Santos, permitiram que muitos dos nossos sonhos se realizassem e que outros despontassem como realizáveis, se a arte e o engenho, a vontade, a luta e a determinação tal possibilitassem.

Quando abrimos a porta de uma gaiola, que tem no seu interior um pássaro encarcerado, apercebemo-nos, de imediato, de que ele voa livremente mas de forma desordenada, buscando uma direcção para o seu livre esvoaçar. Foi o que aconteceu com o povo português nos tempos que se seguiram ao 25 de Abril. Procurámos, ainda hoje o fazemos, caminhos da liberdade que nos permitissem a melhoria quotidiana da nossa qualidade de vida.

Nesses tempos, discutia-se, ainda se discute, qual o melhor sistema educativo para superar o nosso atraso estrutural. Nestas discussões confrontavam-se – hoje ainda assim é – concepções ideológicas divergentes.

Os sistemas educativos não são estanques nem evoluem de forma repentina, isto é, não é possível fazer tábua rasa, ou seja, raspar tudo, não deixar traço de nada, e começar um novo sistema educativo ignorando tudo o que lhe antecedeu. Não é possível! Por isso, quando falo acerca dos sistemas educativos não faço mais do que apresentar, em síntese, as grandes linhas políticas/ideológicas/educativas/pedagógicas/etc., que caracterizam cada uma das suas concepções paradigmáticas. A dinâmica de evolução dos sistemas educativos (cf. Carneiro, 1994) pode, de forma simplificada, ser agrupada em quatro grandes grupos/força motriz: a educação orientada para a produção; a educação orientada para o consumo; a educação orientada para o cliente e, por fim, a educação orientada para a inovação.

A educação orientada para a produção especializava-se na formação de capital humano cuja característica principal era conceber o sistema educativo como uma fábrica de ensino que se assemelhava a uma linha de montagem. O Ministério da Educação detém o monopólio da formação: regula, fiscaliza, e certifica;
Na educação orientada para o consumo, a escola emerge como local onde se prepara para a vida adulta, como utopia organizacional, que satisfaz universalmente as aspirações sociais com base na gratuitidade do sistema público de educação. A escola é encarada como uma grande superfície, onde os seus consumidores vão procurar saciar as suas necessidades em matéria de educação. A escola democratiza-se e com ela surge a ilusão da democracia social;
A educação orientada para o cliente privilegia os seus vários clientes, inseridos na comunidade escolar, e o sistema tende a perder as suas funções centralizadoras, as negociações admitem itinerários individuais de formação; admite-se o cheque-educação, e tudo se joga no mercado livre da oferta e da procura. Small is beautiful.
Na educação orientada para a inovação, valem as alianças e as sinergias, sozinho nada se consegue; o trabalho de grupo e de projecto potencia e maximiza o contributo dos seus membros e configura novas tipologias organizacionais; não tolera hierarquias permanentes que se sustentam numa autoridade imposta; prima pela constante adaptação e pela interacção humana, é menos normativo, combate a exclusão e participa na edificação de uma cidadania social.

A tendência actual do sistema educativo português organiza-se, em grande medida, em torno de uma concepção de educação orientada para a inovação. O nosso sistema educativo é, no entanto, um produto híbrido que se tem vindo a construir com base nas diversas experiências educativas, tensões e conflitos que têm norteado as políticas educativas desde o 25 de Abril.

O passado e o presente em direcção ao futuro

Voltando à minha escola e à narrativa que acerca dela episodicamente construí, facilmente nos apercebemos dos dilemas, tensões e conflitos que eu e os jovens da minha geração vivemos. Não existiam telemóveis, computadores, ifones, ipods e internet, redes sociais, como é o caso do hi5, MySpace, Twitter, Facebook e tantas outras coisas que nos permitem imaginar que habitamos o mesmo sistema solar mas em planetas diferentes. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Convenção sobre os Direitos da Criança, existiam há muito, mas não eram aplicados nem respeitados pelo Estado Novo. Os valores e os princípios fundamentais inscritos na Constituição da República Portuguesa consagram todos os Direitos, Declarações e Convenções internacionais, relativos à defesa dos direitos humanos. Vivemos em democracia! E em democracia procuraremos as respostas para os nossos problemas. A escola actual – do Portugal democrático – enferma de muitos vícios/males, mas não se pode arrogar o direito de ser a sagrada oficina das almas, de exaltar à disciplina e à obediência como condição necessária para o cumprimento do dever e como condição necessária para o progresso e defesa da pátria. A Escola não pode pro(im)por um menu único ou um ilusório fato à medida.

É neste contexto que se torna importante o regulamento interno das escolas e o estatuto do aluno, pelo facto de estes consagrarem um conjunto de deveres e direitos que tornam exequível o acto educativo, porque facilitam as nossas interacções pessoais e, consequentemente, o respeito mútuo. O estatuto do aluno deve ser concebido com uma preocupação central: ser facilitador do acto educativo. Deve, por isso, construir pontes de entendimento entre os diversos intervenientes (professores, alunos, funcionário de acção educativa, pais/encarregados de educação, entre outros) capazes de, em contextos de aprendizagem inovadores, proporcionarem o desenvolvimento de uma formação de excelência às futuras gerações. No actual momento, estão garantidos o acesso e sucesso educativo (mesmo sendo, este último, em muitos casos, administrativo). Devem, por isso, ser regulados em estatuto próprio (regulamento interno e estatuto do aluno), entre outros, os usos que fazemos das novas tecnologias da informação sempre que consideremos que o seu uso (individual) é inadequado e prejudicial ao interesse geral, isto é, a utilização dos meios informáticos são instrumentos fundamentais de aprendizagem, não devendo o seu mau uso ser inibidor dessas mesmas aprendizagens. Alguns exemplos: proibição de uso de telemóvel, ipods e outros aparelhos afins fora dos locais previamente destinados (ex: sala de professores, de directores de turma e PBX, sala dos estudantes, sala dos funcionários). Fora das aulas (admito a utilização nas aulas dos telefones, ipods e outros meios informáticos sempre que um professor o considere vantajoso, para a leccionação de um dos seus conteúdos programáticos), e nos locais supra referenciados deverá ser permitido o seu uso (ex: biblioteca e pátios), somente com auriculares e (unicamente) nos locais previamente assinalados (poder-se-á utilizar dísticos indicativos dos locais onde podem ser utilizados).

A (nossa) qualidade de vida melhora sempre que se conseguem avanços na ciência; em cada um dos momentos em que conseguimos, com a ajuda dos outros, ultrapassar os obstáculos com que nos deparamos no quotidiano das nossas vidas pessoais, profissionais e académica; quando somos capazes de regular, em nome do interesse geral, o direito individual de uso de bens materiais que a ciência nos disponibiliza ou, por motivos das nossas opções de vida, a eles aderimos (ex: fumar).

Com este texto não tenho a pretensão de propor a edificação de um mundo perfeito e/ou a construção de um homem novo. A escola deve educar os indivíduos no sentido de que sejam estes a fazer as suas opções de vida de forma responsável; não pode substituir-se às responsabilidades que cabem às famílias, pais/encarregados de educação. A educação escolar não acompanha nem reproduz a educação que cada família considera a mais adequada para os seus filhos. Ela é complementar da educação familiar, por vezes, antagónica e, em alguns casos, a única que lhes é proporcionada! A educação escolar, por tudo o que fica dito, tem de fornecer instrumentos capazes de preparem as futuras gerações o melhor possível. A educação escolar tem de ser excelente! Não é fácil, sabemo-lo, mas é possível: sim, nós conseguiremos!


Carneiro, R. (1994). A Dinâmica de Evolução dos Sistemas Educativos in C.E. e Socie­dade, nº 6, pp. 13-59.
Stoer, S. R. (1983). A reforma de Veiga Simão no ensino:projecto de desenvolvimento so­cial ou «disfarce humanista»? Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 3.°, 4.° 5.°, 793-822.

Os riscos de má utilização do projecto: problematizando-os



Recebi o nº 1 do Jornal Etc. e foi com grande satisfação que constatei a qualidade/quantidade de informação que nos disponibiliza, assim como a qualidade gráfica do mesmo. Outra coisa não seria de esperar se observarmos que um dos seus promotores é, sem estar a ser excessivo, um dos mais criativos professores que a (nossa) escola pode regozijar-se de ter nos seus quadros. É de muito boa qualidade a maioria dos textos que o compõem! Mas, de entre todos, gostaria de referir-me ao artigo assinado por Maria Helena Padrão.

Este texto está bem escrito; metodologicamente, bem organizado e, sobretudo, problematiza o vocábulo projecto, a que o texto faz alusão, de forma teórica assaz irrepreensível. Não seria, pois, de esperar outra coisa de Maria Helena Padrão. Então, sendo assim, que razões subsistem para me referir a este texto?

Admito, como necessário, ir mais além para compreender a problemática a que o projecto e, sobretudo, o Projecto Educativo (a seguir designado p/PEE) nos remetem.

Considero absolutamente desnecessário repetir uma série de características teóricas que subjazem ao projecto por uma economia de espaço e porque Maria Helena Padrão, como já referi, o faz, e muito bem, no seu texto. Interessa-me, antes, abordar os riscos de má utilização do projecto com o objectivo muito claro de reflectirmos acerca dos que são boas práticas.

Que riscos de má utilização poderemos encontrar na utilização/construção de um p/PEE em muitos dos nossos estabelecimentos de ensino?

Poderemos identificar, senão se tomarem as devidas precauções, cinco riscos (cf. Barroso, J. 1992):
a) Projecto sem projecto - aquele em que o p/PEE não é mais do que o resumo de um plano de actividades, logo, sem problematização preliminar, e sem a consequente defini­ção de objectivos, políticas e estratégias;
b) Projecto por decreto – o que é pró(im)posto pelos serviços centrais do Ministério da Educação e que as escolas perfilham burocraticamente, não se reflectindo, todavia, na (necessária) transformação interna e, por isso, não despontar como um verdadeiro projecto;
c) Projecto mosaico – que tem a pretensão de transformar uma acumulação de projectos sectoriais de grupos/departamentos num projecto global;
d) Projecto ghetto – que se caracteriza pela marginalidade das suas actividades, em relação ao funcionamento global da escola, de circunscrição reduzida e periférica, relativamente ao núcleo duro da organização da escola;
e) Projecto devaneio – um projecto que assenta em intenções vagas que não remetem para qualquer tipo de operacionalização.

Poderemos, pois, encontrar em muitas das nossas escolas p/PEE que se configu­ram/or­ganizam em torno de qualquer um dos modelos discutidos ou, ainda, num compósito de alguns deles. Pelo que fica dito, o p/PEE não pode ser admitido como se de um texto canónico se tratasse, como se ele pudesse reflectir um ideal comum, mas, antes, como um texto com muitas incompletudes que necessitam, por isso, que, com ele, se estabe­leça a neces­sá­ria dialogicidade, no sentido de facilitar a sua permanente actualiza­ção/opera­ciona­li­zação.

Quando num p/PEE se aceita a canonicidade do (seu) texto, estamos a admitir que um(a) qualquer Director(a) Regional de Educação por mera hipótese de trabalho, porque sabemos que estes órgãos são dirigidos por pessoas intelectual e culturalmente incapazes de tal desiderato!) possa obrigar a que se cumpra o que nele está escrito. Na minha segunda hipótese, admito a necessidade de dialogar com o p/PEE, i.e., o texto do p/PEE não é um documento fechado e, por isso, está sujeito a que os órgãos competentes da escola, nomeadamente o Conselho Pedagógico, e somente estes, decidam acerca dele. Neste sentido, sustento que o p/PEE não deve arrogar-se o direito de controlar o universo das acções que se desenvolvem no contexto escolar, não devemos concebê-lo na forma da alienação de cada um em prol do bem de todos, porque isto não só iria contra a liberdade pedagógica responsável, nomeadamente dos professores/grupos/departamentos, como também dos indivíduos enquanto entidades. (cf. B. & Cross, 1992). A história está cheia de (maus) exemplos de obediência cega aos ditames pró(im)postos! É claro que é mais difícil gerir o p/PEE como acto de gestão que convoca os órgãos competentes da escola, nomeadamente o Conselho Pedagógico, para reflectirem sobre as incompletudes do p/PEE e, consequentemente, definirem e decidirem os trajectos organizativos da acção. Mas é de certeza, desta forma, que se negam as peripécias administrativas e burocratizantes que se cumprem de acordo com normas preestabelecidas.

O p/PEE deve ser um meio mobilizador de vontades, [deve] incumbindo-lhe assim procurar, quotidianamente, ganhar novos adeptos. Não sustento, porque já perdi a ingenuidade, há algum tempo, de que toda a comunidade escolar e os diversos interesses que a constituem se revejam no (seu) p/PEE. Admito, por isso, que não se pode margina­li­zar/igno­rar os que nele não se revêem; pelo contrário, defendo que se torna necessário agenciar no sentido de acolher as suas contribuições, integrando-as, sempre que possível.

Em síntese, o p/PEE é um texto aberto cuja potencialidade reside na sua capacidade de combinar a atracção pelo futuro e a acção no presente. A primeira convoca-nos para a definição de futuros possíveis, enquanto a segunda nos remete para a necessidade de diag­nosticar/interrogar o presente, de identificar as tensões/constrangimentos, os recursos disponíveis e, consequentemente, definir objectivos e estratégias da acção. Aos órgãos competentes da escola, nomeadamente ao Conselho Pedagógico, e só a estes, cabe a gestão quotidiana do p/PEE. A accountability das escolas melhora, em geral, quando o seu p/PEE é um texto aberto e se decide, em resultado do diálogo, que é o motor da acção, o processo construtor da inovação.




Broch, M., & Cross, F. (1992). O Projecto de Escola Prisioneiro dos Métodos? Os Paradigmas Metedológicos ligados ao Projecto de Escolas in Canário R. (Org. Inovação e Projecto de Escola, pp. 143-163. Lisboa: Ed. Educa.
J., B. ( (1992) ). Fazer da escola um Projecto in Canário, R. (Org.) (1992). Inovação e Projecto Educativo de Escola, pp. 28-56. Lisboa: Ed Educar.

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