sábado, junho 06, 2020

A Mentira e o Mentiroso


“Quando ligo o rádio e ouço que, na América, os pretos são linchados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo o radio e ouço que judeus são insultados, desprezados, massacrados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo enfim o rádio e ouço que na África o trabalho forçado está instituído, legalizado, digo que, na verdade, nos mentiram: Hitler não morreu.”
Frantz Fanon
Pele Negra Máscaras Brancas Pele pág. 88


Recebi do meu amigo, J.S., um e-mail com dois anexos assaz interessantes. Têm ambos um valor simbólico, muitíssimo importante, para mim: um com o título “A Política”, por Rafael Bordalo Pinheiro, e o outro, intitulado “De Relance”, é um texto de J. Alberto de Oliveira.

Rafael Bordalo Pinheiro é uma figura da cultura nacional oitocentista. Viveu entre o final do último quartel do século dezanove e o início do século XX. É um nome que está intrinsecamente ligado, entre outros, à caricatura e ao humor. Foi, também, ilustrador, jornalista e ceramista. Foi, na sua época, um paladino da crítica política. Foi corrosivo, acutilante e sar­cástico com todos os agentes políticos do seu tempo. Manuel António Botas, meu trisavô, não escapou à sua crítica e às suas cáusticas caricaturas. O meu trisavô foi, no seu tempo, o inteligente da praça de Toiros do Campo Pequeno e, por isso, Bordalo Pinheiro o caricaturou, diversas vezes, nos jornais, sobretudo, nos tauromáquicos, e nas revistas da época. A pesquisa que desenvolvi, no âmbito da minha tese de doutoramento, proporcionou-me, através de Rafael Bordalo Pinheiro, o acesso a jornais e revistas da época que escreviam e ou desenhavam Botas num traço cheio de exageros e expressão grotesca ou jocosa. Bordalo Pinheiro caricaturava o inteligente Manuel António Botas no camarote presidencial da Praça de Toiros do Campo Pequeno com a sua cartola. A minha investigação propiciou-me, ainda, uma maior aproximação e um melhor conhecimento da figura de Bordalo Pinheiro.

Não fiquei, pois, surpreendido ao encontrar no e-mail do meu amigo J.S. algumas caricaturas interessantíssimas de Rafael Bordalo Pinheiro. O meu amigo J.S. sabe – por experiência, cooperação e auxílio generoso que me concedeu no passado e que permanece no presente –, o quanto eu admiro e prezo Rafael Bolado Pinheiro. 

O outro anexo ao e-mail, que contém o texto “De Relance”, de J. Alberto de Oliveira, é uma “pequena maravilha”. Propicia-nos uma magnífica sensação de deslumbramento e encanto; assombro, fascínio, pela qualidade da escrita e do exposto e, sobretudo, pelo modo coerente da sua construção. 

O texto está estruturado numa pergunta e numa resposta: «Sabeis o que significa ser ’puro de coração’»? – «Puro de coração é não ser trafulha».

Ora, para o autor, o trafulha é uma espécie de chico-esperto, matreiro (Datação: século XIII), intrujão (Datação: 1881), farsante (Datação: século XVII), patife (Datação: 1608), safado (datação: 1553), trapalhão (Datação: 1721), trampolineiro (Datação: 1858), trambiqueiro Datação: 1899), astuto (Datação; século XX), falcatrueiro (Datação: século XV). Resumindo: é um mentiroso em cada um dos vários sentidos que a palavra ou a frase representa de acordo com um determinado contexto e / ou denominações históricas.

Numa pesquisa rápida, no Dicionário Eletrónico Houaiss da língua Portuguesa, encontrei a datação de algumas das palavras utilizadas pelo autor do já citado texto “De Relance” e verifiquei que algumas destas palavras são usadas em períodos que decorrem entre o século XIII e o século XX. Estas palavras parecem conter uma memória dos seus significados anteriores.

Mas será que existem significados intrínsecos, verdadeiros ou reais, à margem dos contextos sociais, económicos, políticos, religiosos, étnicos, artísticos, científicos, filosóficos, e alheios às mudanças da própria natureza?

Não, não existem. As mudanças que se observam nas palavras e / ou na língua no decurso do tempo coabitam com as transformações dos conceitos de vida de uma sociedade, com a evolução que se vai operando a nível das artes, da filosofia, da ciência e, até, com as lentas modificações da própria natureza.

Então, é ou não possível afirmar que as palavras possuem significados cujo espectro semântico vai para além dos que lhes são dados? As palavras são como rótulos que colocamos nas coisas?

NIM?! As palavras são rótulos que facilitam a comunicação interpessoal, mas certas palavras mudam de significado ao longo do tempo e nas diferentes culturas. Ao longo do seu decurso histórico, as palavras e as línguas sofrem muitas transformações[1]: ajustam os sons; reor­ganizam as formas ou as manifestações externas do pensamento ou do sentimento; diversificam a disposição das palavras, a relação lógica das frases entre si; o estilo e a linguagem; o do signi­fi­cado e do significante.

A história de uma língua, à semelhança do que acontece com a história da humanidade, como referiu Michel Foucault, “não é uma duração: é uma multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos outros”. [2]

É, pois, inútil a minha tarefa de descobrir os reais significados de cada uma das palavras utilizadas no texto “De Relance”. Não é possível alcançar nenhuma informação definitiva e legitimada. A língua está em constante transformação, sofrendo modificações em diferentes contextos. A sociedade evolui e, com ela, as palavras não só originam outras, como adquirem, igualmente, outros significados. Subsistem palavras antigas que são, ainda, utilizadas por muitas pessoas. Formas verbais que já caíram em desuso, mas que permanecem e conflituam, por vezes, com outras. Mas elas existiram e fizeram parte da uma norma padrão. Podemos, então, dizer que o errado de hoje foi o correto de ontem. No entanto, uma reflexão crítica acerca da experiência histórica e social das palavras levar-nos-á a refletir sobre o conceito de errado e a percebermos que algumas das palavras usadas por muitas pessoas e que são entendidas como erradas são, na verdade, expressões antigas que pertenceram à norma padrão da língua portu­guesa, e ao seu léxico. Os tempos fizeram com que ingressassem a outros tempos, caindo em desuso, i. e., tornaram-se em arcaísmos. Muitos falantes são vítimas de preconceitos sociais e até de exclusão social por utilizarem palavras que não estão de acordo com uso da norma padrão da língua portuguesa. As palavras e as frases com códigos idênticos podem fazer emer­gir diferentes significados. Para além da variação regional, as línguas apresentam, igualmente, diferenças resultantes dos distintos grupos sociais, do escalão etário, do meio sociocultural, e dos grupos profissionais de pertença, entre outros. Daqui decorre a importância da escolarização e do ensino obrigatório e universal da língua e da literatura portuguesas que facultam o acesso à norma padrão e ao código elaborado em todos os níveis linguísticos.

O texto “De Relance” transporta em si mesmo um conjunto referencial de palavras que, como em todos nós, pulsa, agiganta-se, torna-se flexível, possui uma multiplicidade de cores, expande-se e vive. 


Mas a mentira e o mentiroso, no belo texto a que me refiro, transporta pressupostos e representações com consequências sociais. A mentira é uma das faces da representação da persona – uma variante da pluralidade das nossas representações. Produz efeitos sociais. É, também, a exteriorização da autonomia relativa que o sujeito tem, relativamente ao seu meio social. A produção social da mentira é construtora de um habitus. Tal prática social, tão disseminada, não surge nem se reproduz num vazio social. A mentira manifesta-se em todas as classes sociais. As ações humanas que lhe subjazem não sucedem casualmente, ocorrem susten­tadas em esquemas de pensamentos e ações que preveem um série de conhecimentos, perceções e hipóteses prévias que auxiliam na sua construção e formulação. É, portanto, intencional. E isto é reconhecido em todo o tipo de mentiras, das mais básicas às mais elaboradas e complexas. Quanto à dimensão moral das mentiras, interessa explicitar que ela é produto de manifestos antagonismos entre o indivíduo e o seu contexto social; entre atores com agendas próprias.

A mentira é uma prática social presente no quotidiano das nossas relações sociais e está presente em toda a sociedade humana. É encarada como uma prática socialmente reprovável, e contudo, é repetidamente usada, até mesmo por pessoas que, declaradamente, a desaprovam: Quem mente não vem de boa gente.

Nada é dito acerca do processo que leva uma mentira a ser contada. Assim sendo, não sabemos porque é que “trafulha é uma palavra que se inspira no escuro”. Para compreender o mentiroso e a mentira, é necessário sair do lugar em que foi colocado e compreender o men­tiroso e a mentira no âmbito da pluralidade de interações sociais em que podem surgir. Deso­cultemos, pois, o enigma retirando o mentiroso e a mentira do contexto amplificado em que o autor o colocou, libertando-o, assim, das amarras que o edificaram. Então, a mentira e o mentiroso, neste espaço de diversidade argumentativa, podem ser relacionados com uma faísca que ateia um rastilho. O rastilho pode, consequentemente, levantar explosões argumentativas, porém, quando a poeira assenta, a disputa definha. Ora, o que desejo é abordar o paradoxo do mentiroso como um desafio ao conhecimento, sobretudo, à coerência. Pretendo, por isso, organizar um pensamento, uma asserção, ou argumento, que se declare contraditório aos princípios básicos e gerais que costumam organizar o pensamento humano, ou que desafie a opinião consabida, a crença correspondente ao costume, à ordem normal, ao comummente partilhado, i.e., o paradoxo.

Autores de referência publicaram livros cuja temática se centra na figura do mentiroso e da mentira. Dois exemplos: Óscar Wilde escreveu O Declínio da Mentira e Almeida Garrett escreveu a peça de teatro Falar Verdade a Mentir.

 O mentiroso e a mentira desmascaram-se no contexto da relação interpessoal. Os recursos utilizados pelo mentiroso para contar as suas mentiras manifestam-se nos gestos com­portamentais, nas expressões faciais, na postura corporal e na entoação da voz. Ao mentir, o mentiroso simula ideias, sentimentos e emoções. Mas se esta caracterização da figura do mentiroso é parcialmente correta num determinado tempo histórico, não o é, todavia, no nosso tempo. A instrumentalização dos mass media (a televisão, a rádio, a imprensa, etc.) e, sobretudo, a Internet fez emergir uma outra figura do mentiroso: sem o rosto e amarras, sem as expressões corporais que o representavam. O mentiroso e a mentira exigem, agora, meios mais refinados para serem descobertos. O polígrafo e (alguns) outros instrumentos assentes na ciência dos dados possibilitam desvendar o novo tipo de mentira e o mentiroso.

As causas neurobiológicas do comportamento mentiroso não serão, por motivos óbvios, aqui debatidas, sobretudo os casos da mentira patológica, dos fenómenos criminosos, como crimes de fraude, entre outros comparáveis. Esta é uma exclusão problemática, eventualmente enganadora ou ingénua, pelo facto de a mentira e o mentiroso produzirem efeitos sociais de diferentes graus e, ainda, porque existe uma “escala da mentira” difícil de detetar, sendo, por isso, complicado categorizar o que está excluído, ou não, desta abordagem. A mentira é comum, e oculta as suas reais intenções: Na boca do mentiroso, o certo faz-se duvidoso.

Mas qual é a natureza da mentira? Por que se mente?

Para obtermos resposta(s) a estas duas perguntas, teremos de admitir a necessidade de seguir um método que nos permita a deteção da mentira. Ora, os métodos para a descoberta da mentira não são tão recentes quanto se possa pensar. Com efeito, há muito que existem algumas práticas sociais:

a) Na Idade Média, as mentiras estavam diretamente relacionadas com as crenças mágicas e / ou religiosas, e para se conseguir identificá-las, o (acusado) “mentiroso” poderia, entre outras práticas, ser torturado até dizer a “verdade”, ou colocado dentro de um saco e atirado para um lago: se se afundasse, seria considerado culpado, mas se flutuasse, seria inocente. Este procedimento sucedia porque, segundo uma crença cristã, o inocente teria a sua boa alma e, por alguma intervenção divina, salvar-se-ia;
b) Os donos de pessoas escravizadas consideravam-nas, entre o século XVI e XVIII, na Península Ibérica, como “gente infame, inquietos, revoltosos, ladrões, e tendentes a mentir aos seus amos”;
c) Alguns dicionários da língua portuguesa continuam a definir o cigano como impostor, i.e., “aquele que demonstra ou pratica impostura; embusteiro; que ou quem se aproveita da credulidade e da ignorância de outrem para ludibriá-lo; mentiroso, hipócrita.”;
d) Um falsificador de arte espera convencer o seu público de que a “obra de arte” que pretende vender é de um artista consagrado. No entanto, alguns artistas consagrados, eles próprios, criaram obras que são cópias da arte grega. Muitas das ditas “restaurações” do nosso património artístico e cultural (pinturas, castelos, tapeçarias, móveis, edifícios centenários, etc.) são adulteradas e, nalguns casos, sem limites éticos no que à trapaça diz respeito;
e) Um prisioneiro político, como foi o caso de alguns presos políticos portugueses, tenderiam a mentir aos esbirros da PIDE para preservarem um bem maior, a verdade. Calar ou mentir para não denunciar os seus camaradas, a sua organização partidária, o objetivo da sua luta: a reposição das mais amplas liberdades, a democracia, entre outras.

Estes exemplos são convocados, de entre muitos outros, para esta discussão, a fim de ajudarem a compreender e / ou a refutar algumas ideias universais que se construíram relativa­mente ao mentiroso e à mentira. Para conhecer e melhor compreender o comportamento do mentiroso, é, pois, necessário analisar o contexto social, profissional e político ao qual o mentiroso foi ou está exposto.

Existem, pois, mentiras em benefício próprio e mentiras em benefício de outros. Estas são comummente aceites como sendo bem-intenciona­das, pois são mentiras sociais com o objetivo, em muitos casos, de proteger outras pessoas: um familiar, um amigo, por exemplo.
Efetivamente, uma pessoa pode mentir se se encontrar numa situação moralmente des­confortável, para ocultar uma adversidade de cariz pessoal: o mentiroso inventa uma desculpa para não ir a um jantar de amigos, quando a verdadeira razão é a falta de dinheiro. Neste caso, recorre à mentira por constrangimento.

A mentira pode ser dita, para causar boa impressão: tal expediente é muito comum na construção identitária dos adolescentes. A insegurança e a inexperiência levam, por vezes, o jovem adolescente a orgulhar-se de que já fez o ainda não experimentado. O exagero e a invenção embelezam a verdade com algumas informações falsas. As conquistas académicas, os flirts, os feitos desportivos ou habilidades pessoais são, muitas vezes, adornados com mentiras para causar boa impressão.

Quando o mentiroso inventa detalhes da sua vida pessoal respeitantes à sua saúde para obter auxílio financeiro ou inclui dados falsos ao seu currículo, está a mentir para obter vantagens pessoais.

Uma pessoa falsifica a contabilidade de uma empresa para pagar menos impostos, ou mente ao seu cônjuge dizendo que estava num determinado lugar quando, na verdade, estava com outra pessoa. Ora, em qualquer um destes dois exemplos a pessoa mente para evitar uma punição, e isto pode(rá) acontecer quando a mentira é diretamente proporcional às conse­quên­cias associadas ao ato de ser apanhado a mentir. Existem, neste caso, ainda que em graus diferentes de motivação, para evitar uma punição. A mentira tem pernas curtas, no entanto

Nicolau Maquiavel, no Príncipe, deixa muito claro que subsiste uma diferença entre moral praticada na nossa vida quotidiana e a moral que circula nos meios políticos. As mentiras, para manterem o poder, são processadas por “razões de Estado”. A arte da política é proceder no sentido de conquistar os meios necessários para implementação e cumprimento dos seus progra­mas e ideias políticos. Neste caso, a mentira metamorfoseia-se numa virtude maquia­vé­lica.  

Chegados aqui, poderíamos expressar a ideia de que existem dois tipos básicos de mentiras: as mentiras pró sociais e as mentiras egoístas, e cada uma delas equilibra as con­tradições existentes entre o individual e o coletivo, i.e., entre o indivíduo e a sociedade. Mas o que assemelha um tipo de mentira ao outro continua a ser o facto de ambas serem socialmente condenáveis. A mentira só dura enquanto a verdade não chega.



[1] in Figueiredo, 1931. Novo Dicionário da Língua Portuguesa
[2] Citado por Silva, 2008, p. 41.

Bibliografia

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Silva, R. V. (2008). Teorias da mudança linguisticas e a sua relação com a(s) história(s) da(s) língua(s). Brasil: Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto - Vol. 3.

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