“Quando ligo o rádio e ouço que, na América, os pretos são linchados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo o radio e ouço que judeus são insultados, desprezados, massacrados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo enfim o rádio e ouço que na África o trabalho forçado está instituído, legalizado, digo que, na verdade, nos mentiram: Hitler não morreu.”
Frantz Fanon
Pele Negra Máscaras Brancas Pele pág. 88
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Recebi do meu amigo,
J.S., um e-mail com dois anexos assaz
interessantes. Têm ambos um valor simbólico, muitíssimo importante, para mim:
um com o título “A Política”, por Rafael Bordalo Pinheiro, e o outro, intitulado
“De Relance”, é um texto de J. Alberto de Oliveira.
Rafael Bordalo
Pinheiro é uma figura da cultura nacional oitocentista. Viveu entre o final do
último quartel do século dezanove e o início do século XX. É um nome que está intrinsecamente
ligado, entre outros, à caricatura e ao humor. Foi, também, ilustrador,
jornalista e ceramista. Foi, na sua época, um paladino da crítica política. Foi
corrosivo, acutilante e sarcástico com todos os agentes políticos do seu
tempo. Manuel António Botas, meu trisavô, não escapou à sua crítica e às suas cáusticas
caricaturas. O meu trisavô foi, no seu tempo, o inteligente da praça de Toiros do Campo Pequeno e, por isso,
Bordalo Pinheiro o caricaturou, diversas vezes, nos jornais, sobretudo, nos tauromáquicos,
e nas revistas da época. A pesquisa que desenvolvi, no âmbito da minha tese de
doutoramento, proporcionou-me, através de Rafael Bordalo Pinheiro, o acesso a jornais
e revistas da época que escreviam e ou desenhavam Botas num traço cheio de
exageros e expressão grotesca ou jocosa. Bordalo Pinheiro caricaturava o inteligente Manuel António Botas no
camarote presidencial da Praça de Toiros do Campo Pequeno com a sua cartola. A
minha investigação propiciou-me, ainda, uma maior aproximação e um melhor
conhecimento da figura de Bordalo Pinheiro.
Não fiquei, pois, surpreendido
ao encontrar no e-mail do meu amigo
J.S. algumas caricaturas interessantíssimas de Rafael Bordalo Pinheiro. O meu
amigo J.S. sabe – por experiência, cooperação e auxílio generoso que me
concedeu no passado e que permanece no presente –, o quanto eu admiro e prezo
Rafael Bolado Pinheiro.
O outro anexo ao e-mail, que contém o texto “De Relance”,
de J. Alberto de Oliveira, é uma “pequena maravilha”. Propicia-nos uma magnífica
sensação de deslumbramento e encanto; assombro, fascínio, pela qualidade da
escrita e do exposto e, sobretudo, pelo modo coerente da sua construção.
O texto está estruturado
numa pergunta e numa resposta: «Sabeis o que significa ser ’puro de coração’»? –
«Puro de coração é não ser trafulha».
Ora, para o autor, o trafulha
é uma espécie de chico-esperto, matreiro (Datação: século XIII), intrujão
(Datação: 1881), farsante (Datação: século XVII), patife (Datação: 1608),
safado (datação: 1553), trapalhão (Datação: 1721), trampolineiro (Datação:
1858), trambiqueiro Datação: 1899), astuto (Datação; século XX), falcatrueiro
(Datação: século XV). Resumindo: é um
mentiroso em cada um dos vários sentidos que a palavra ou a frase representa de
acordo com um determinado contexto e / ou denominações históricas.
Numa
pesquisa rápida, no Dicionário Eletrónico
Houaiss da língua Portuguesa, encontrei a datação de algumas das palavras
utilizadas pelo autor do já citado texto “De Relance” e verifiquei que
algumas destas palavras são usadas em períodos que decorrem entre o século XIII
e o século XX. Estas palavras parecem conter uma memória dos seus significados
anteriores.
Mas
será que existem significados intrínsecos, verdadeiros ou reais, à margem dos
contextos sociais, económicos, políticos, religiosos, étnicos, artísticos,
científicos, filosóficos, e alheios às mudanças da própria natureza?
Não,
não existem. As mudanças que se observam nas palavras e / ou na língua no decurso
do tempo coabitam com as transformações dos conceitos de vida de uma sociedade,
com a evolução que se vai operando a nível das artes, da filosofia, da ciência
e, até, com as lentas modificações da própria natureza.
Então,
é ou não possível afirmar que as palavras possuem significados cujo espectro
semântico vai para além dos que lhes são dados? As palavras são como rótulos que colocamos nas coisas?
NIM?!
As palavras são rótulos que facilitam
a comunicação interpessoal, mas certas palavras mudam de significado ao longo
do tempo e nas diferentes culturas. Ao longo do seu decurso histórico, as
palavras e as línguas sofrem muitas transformações[1]: ajustam
os sons; reorganizam as formas ou as manifestações externas do pensamento ou
do sentimento; diversificam a disposição das palavras, a relação lógica das
frases entre si; o estilo e a linguagem; o do significado e do significante.
A
história de uma língua, à semelhança do que acontece com a história da
humanidade, como referiu Michel Foucault, “não é uma duração: é uma
multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos outros”. [2]
É,
pois, inútil a minha tarefa de descobrir os reais significados de cada uma das
palavras utilizadas no texto “De Relance”. Não é possível alcançar nenhuma
informação definitiva e legitimada. A língua está em constante transformação,
sofrendo modificações em diferentes contextos. A sociedade evolui e, com ela,
as palavras não só originam outras, como adquirem, igualmente, outros
significados. Subsistem palavras antigas que são, ainda, utilizadas por muitas
pessoas. Formas verbais que já caíram em desuso, mas que permanecem e conflituam,
por vezes, com outras. Mas elas existiram e fizeram parte da uma norma padrão. Podemos, então, dizer
que o errado de hoje foi o correto de
ontem. No entanto, uma reflexão
crítica acerca da experiência histórica e social das palavras levar-nos-á a refletir
sobre o conceito de errado e a percebermos
que algumas das palavras usadas por muitas pessoas e que são entendidas como erradas são, na verdade, expressões
antigas que pertenceram à norma padrão da
língua portuguesa, e ao seu léxico. Os tempos fizeram com que ingressassem a outros
tempos, caindo em desuso, i. e., tornaram-se em arcaísmos. Muitos falantes são
vítimas de preconceitos sociais e até de exclusão social por utilizarem
palavras que não estão de acordo com uso da norma
padrão da língua portuguesa. As palavras e as frases com códigos idênticos
podem fazer emergir diferentes significados. Para além da variação regional,
as línguas apresentam, igualmente, diferenças resultantes dos distintos grupos
sociais, do escalão etário, do meio sociocultural, e dos grupos profissionais
de pertença, entre outros. Daqui decorre a importância da escolarização e do ensino
obrigatório e universal da língua e da literatura portuguesas que facultam o acesso
à norma padrão e ao código elaborado em todos os níveis
linguísticos.
O texto “De Relance”
transporta em si mesmo um conjunto referencial de palavras que, como em todos
nós, pulsa, agiganta-se, torna-se flexível, possui uma multiplicidade de cores,
expande-se e vive.
Mas a mentira e o mentiroso, no belo texto a
que me refiro, transporta pressupostos e representações com consequências
sociais. A mentira é uma das faces da
representação da persona – uma variante da pluralidade das nossas
representações. Produz efeitos sociais. É, também, a exteriorização da
autonomia relativa que o sujeito tem, relativamente ao seu meio social. A
produção social da mentira é construtora de um habitus. Tal prática social, tão disseminada, não surge nem se
reproduz num vazio social. A mentira manifesta-se em todas as classes sociais. As
ações humanas que lhe subjazem não sucedem casualmente, ocorrem sustentadas em
esquemas de pensamentos e ações que preveem um série de conhecimentos,
perceções e hipóteses prévias que auxiliam na sua construção e formulação. É,
portanto, intencional. E isto é reconhecido em todo o tipo de mentiras, das
mais básicas às mais elaboradas e complexas. Quanto à dimensão moral das
mentiras, interessa explicitar que ela é produto de manifestos antagonismos
entre o indivíduo e o seu contexto social; entre atores com agendas próprias.
A mentira é uma
prática social presente no quotidiano das nossas relações sociais e está
presente em toda a sociedade humana. É encarada como uma prática socialmente reprovável,
e contudo, é repetidamente usada, até mesmo por pessoas que, declaradamente, a desaprovam: Quem mente não vem de boa gente.
Nada é dito acerca do
processo que leva uma mentira a ser contada. Assim sendo, não sabemos porque é
que “trafulha é uma palavra que se inspira no escuro”. Para compreender o
mentiroso e a mentira, é necessário sair do lugar em que foi colocado e
compreender o mentiroso e a mentira no âmbito da pluralidade de interações
sociais em que podem surgir. Desocultemos, pois, o enigma retirando o
mentiroso e a mentira do contexto amplificado em que o autor o colocou,
libertando-o, assim, das amarras que o edificaram. Então, a mentira e o
mentiroso, neste espaço de diversidade argumentativa, podem ser relacionados
com uma faísca que ateia um rastilho. O rastilho pode, consequentemente,
levantar explosões argumentativas, porém, quando a poeira assenta, a disputa
definha. Ora, o que desejo é abordar o paradoxo
do mentiroso como um desafio ao conhecimento, sobretudo, à coerência. Pretendo,
por isso, organizar um pensamento, uma asserção, ou argumento, que se declare
contraditório aos princípios básicos e gerais que costumam organizar o
pensamento humano, ou que desafie a opinião consabida, a crença correspondente
ao costume, à ordem normal, ao comummente partilhado, i.e., o paradoxo.
O mentiroso e a mentira desmascaram-se no
contexto da relação interpessoal. Os recursos utilizados pelo mentiroso para
contar as suas mentiras manifestam-se nos gestos comportamentais, nas
expressões faciais, na postura corporal e na entoação da voz. Ao mentir, o
mentiroso simula ideias, sentimentos e emoções. Mas se esta caracterização da
figura do mentiroso é parcialmente correta num determinado tempo histórico, não
o é, todavia, no nosso tempo. A instrumentalização dos mass media (a televisão, a rádio, a imprensa, etc.) e, sobretudo, a
Internet fez emergir uma outra figura
do mentiroso: sem o rosto e amarras, sem as expressões corporais que o
representavam. O mentiroso e a mentira exigem, agora, meios mais refinados para
serem descobertos. O polígrafo e (alguns) outros instrumentos assentes na ciência dos dados possibilitam desvendar
o novo tipo de mentira e o mentiroso.
As causas
neurobiológicas do comportamento mentiroso não serão, por motivos óbvios, aqui
debatidas, sobretudo os casos da mentira patológica, dos fenómenos criminosos,
como crimes de fraude, entre outros comparáveis. Esta é uma exclusão
problemática, eventualmente enganadora ou ingénua, pelo facto de a mentira e o
mentiroso produzirem efeitos sociais de diferentes graus e, ainda, porque existe
uma “escala da mentira” difícil de detetar, sendo, por isso, complicado
categorizar o que está excluído, ou não, desta abordagem. A mentira é comum, e
oculta as suas reais intenções: Na boca
do mentiroso, o certo faz-se duvidoso.
Mas qual é a natureza
da mentira? Por que se mente?
Para obtermos
resposta(s) a estas duas perguntas, teremos de admitir a necessidade de seguir
um método que nos permita a deteção da mentira. Ora, os métodos para a
descoberta da mentira não são tão recentes quanto se possa pensar. Com efeito, há
muito que existem algumas práticas sociais:
a) Na Idade Média, as
mentiras estavam diretamente relacionadas com as crenças mágicas e / ou
religiosas, e para se conseguir identificá-las, o (acusado) “mentiroso” poderia,
entre outras práticas, ser torturado até dizer a “verdade”, ou colocado dentro de
um saco e atirado para um lago: se se afundasse, seria considerado culpado, mas
se flutuasse, seria inocente. Este procedimento sucedia porque, segundo uma
crença cristã, o inocente teria a sua boa
alma e, por alguma intervenção divina, salvar-se-ia;
b) Os donos de
pessoas escravizadas consideravam-nas, entre o século XVI e XVIII, na Península
Ibérica, como “gente infame, inquietos, revoltosos, ladrões, e tendentes a
mentir aos seus amos”;
c) Alguns dicionários
da língua portuguesa continuam a definir o cigano como impostor, i.e., “aquele que demonstra ou pratica impostura; embusteiro;
que ou quem se aproveita da credulidade e da
ignorância de outrem para ludibriá-lo; mentiroso, hipócrita.”;
d)
Um falsificador
de arte espera convencer o seu
público de que a “obra de arte” que pretende vender é de um artista consagrado.
No entanto, alguns artistas consagrados, eles próprios, criaram obras que são
cópias da arte grega. Muitas das ditas “restaurações” do nosso património
artístico e cultural (pinturas, castelos, tapeçarias, móveis, edifícios
centenários, etc.) são adulteradas e, nalguns casos, sem limites éticos no que à
trapaça diz respeito;
e) Um prisioneiro
político, como foi o caso de alguns presos políticos portugueses, tenderiam a
mentir aos esbirros da PIDE para
preservarem um bem maior, a verdade. Calar ou mentir para não denunciar os seus
camaradas, a sua organização partidária, o objetivo da sua luta: a reposição
das mais amplas liberdades, a democracia, entre outras.
Estes exemplos são
convocados, de entre muitos outros, para esta discussão, a fim de ajudarem a
compreender e / ou a refutar algumas ideias
universais que se construíram relativamente ao mentiroso e à mentira. Para
conhecer e melhor compreender o comportamento do mentiroso, é, pois, necessário
analisar o contexto social, profissional e político ao qual o mentiroso foi ou
está exposto.
Existem, pois,
mentiras em benefício próprio e mentiras
em benefício de outros. Estas são comummente aceites como sendo
bem-intencionadas, pois são mentiras sociais com o objetivo, em muitos casos,
de proteger outras pessoas: um familiar, um amigo, por exemplo.
Efetivamente, uma
pessoa pode mentir se se encontrar numa situação moralmente desconfortável, para
ocultar uma adversidade de cariz pessoal: o mentiroso inventa uma desculpa para
não ir a um jantar de amigos, quando a verdadeira razão é a falta de dinheiro. Neste
caso, recorre à mentira por constrangimento.
A mentira pode ser
dita, para causar boa impressão: tal
expediente é muito comum na construção identitária dos adolescentes. A
insegurança e a inexperiência levam, por vezes, o jovem adolescente a orgulhar-se
de que já fez o ainda não experimentado. O exagero e a invenção embelezam a
verdade com algumas informações falsas. As conquistas académicas, os flirts, os feitos desportivos ou
habilidades pessoais são, muitas vezes, adornados com mentiras para causar
boa impressão.
Quando o mentiroso
inventa detalhes da sua vida pessoal respeitantes à sua saúde para obter
auxílio financeiro ou inclui dados falsos ao seu currículo, está a mentir para
obter vantagens pessoais.
Uma pessoa falsifica
a contabilidade de uma empresa para pagar menos impostos, ou mente ao seu
cônjuge dizendo que estava num determinado lugar quando, na verdade, estava com
outra pessoa. Ora, em qualquer um destes dois exemplos a pessoa mente para
evitar uma punição, e isto pode(rá) acontecer quando a mentira é diretamente
proporcional às consequências associadas ao ato de ser apanhado a mentir. Existem,
neste caso, ainda que em graus diferentes de motivação, para evitar uma
punição. A mentira tem pernas
curtas, no entanto.
Nicolau Maquiavel, no Príncipe, deixa muito claro que subsiste
uma diferença entre moral praticada na nossa vida quotidiana e a moral que
circula nos meios políticos. As mentiras, para manterem o poder, são
processadas por “razões de Estado”. A arte
da política é proceder no sentido de conquistar os meios necessários para
implementação e cumprimento dos seus programas e ideias políticos. Neste caso,
a mentira metamorfoseia-se numa virtude maquiavélica.
Chegados
aqui, poderíamos expressar a ideia de que existem dois tipos básicos de
mentiras: as mentiras pró sociais e
as mentiras egoístas, e cada uma
delas equilibra as contradições existentes entre o individual e o coletivo, i.e.,
entre o indivíduo e a sociedade. Mas o que assemelha um tipo de mentira ao
outro continua a ser o facto de ambas serem socialmente condenáveis. A mentira só dura enquanto a verdade não
chega.
[2]
Citado por Silva, 2008, p. 41.
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