segunda-feira, junho 07, 2021

Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal - Hannah Arendt

 Eichmann em Jerusalém

Um relato sobre a banalidade do mal

Hannah Arendt




A imprensa internacional noticiou em Maio de 1960 a captura do ex-oficial nazi Otto Adolfo Eichmann, num subúrbio da cidade de Buenos Aires, na argentina. Adolfo Eichmann foi raptado pelos serviços secretos de Israel e levado para Jerusalém para ser julgado na Casa da Justiça (“Beth Hamishpath”): pelos crimes praticados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, sobretudo por estar implicado na organização da “Solução Final.

A cobertura do julgamento foi efetuada por diferentes meios de comunicação internacionais. Em representação da Revista New Yorker esteve Hannah Arendt. A cobertura deste julgamento despertou uma acesa discussão entre jornalista e académicos. As reportagens de Arendt para o New Yorker  surpreenderam a comunidade intelectual que se dividiu entre acusadores e defensores das suas opiniões sobre o julgamento e os crimes cometidos pelos nazis durante o conflito. Alguns, sobretudo judeus, transformaram-na num alvo a abater.   Arendt nas suas reportagens mostra que ao contrário de vilões e vítimas, neste julgamento existiam pessoas comuns que sobreviveram à sangrenta Segunda Guerra Mundial. 

As reportagens de Hannah Arendt e o livro que viria a publicar mais tarde (maio de 1963), acerca do julgamento de Adolf Eichmann, permanecem atuais e, por isso, nos convoca para a necessária reflexão, como observaremos.  


Arendt relata, nas reportagens que fez para o New Yorker, que na primeira semana do julgamento de Eichmann, este já tinha sido sentenciado e culpabilizado pelos correspondentes dos jornais presentes, e pela opinião pública em geral. Este julgamento provocou uma grande discussão sobre a ética e o jornalismo. Discussão que se mantêm na atualidade. 


O julgamento direcionou a atenção dos mass media para a necessária discussão sobre a bestialidade dos crimes do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. O julgamento de Eichmann voltou a centrar as atrocidades do regime nazi na agenda política. Diferentes narrativas espoletaram. A da Hannah Arendt com uma leitura critica e incisiva, e outras com perceções mais emocionais, como foi, entre outras, o caso da do Comité Judaico Americano. 

  O julgamento transformou-se num espectáculo que emergiu como consequência da paixão do promotor pela teatralidade. Esta teatralização do julgamento, segundo Arendt, decorria dos interesses do primeiro-ministro David Ben-Gurion. “A lógica do julgamento de Eichmann, conforme concebido por Ben-Gurion, com ênfase em questões gerais, em detrimento de subtilezas legais, exigiria a exposição da cumplicidade de todos os funcionários e autoridades alemães na Solução Final” (Arendt, 2013, p. 29). Ben-Guiron era o diretor de cena deste processo. 

Este julgamento, para Ben-Gurion,   mostraria o que era viver entre não-judeus, e convencê-los-ia de que só em Israel um judeu teria segurança e poderia viver com honra (Arend, 2013, p. 18). Mas Hannah Arendt não se intimidou e não condescendeu fazendo uma das afirmações mais polémicas e inovadoras em termos (in)formativos da sua carreira: a cooperação das organizações judaicas com o nazismo. “Era Realpolitik sem tons maquiavélicos, e seus perigos vieram à luz anos depois, quando eclodiu a guerra, quando esses contactos diários entre as organizações judaicas e a burocracia nazi tornaram tão fácil para os funcionários judeus atravessar o abismo entre ajudar os judeus a escapar ou ajudar os nazis a deportá-los.)” (Arendt, 2013, p. 21)

Os judeus que muito contribuiriam para a construção da história de Eichmann, e dela fazer algo de verosímil, eram os sionistas com que o ex-oficial   estabeleceu ligações nos seus primeiros tempos de serviço na inteligência do partido nazi. O sucesso dos nazis deve-se muito a este grupo que foi capaz de promover campanhas apoiadas por judeus influentes, que inclusive estimulavam o uso da estrela que os identificava mesmo antes da sua obrigatoriedade. Para este grupo de judeus a ascensão de Hitler trazia vantagens e uma atmosfera de vitória em relação aos (judeus) assimilacionistas que pretendiam viver na Europa, como Europeus.  


A cooperação deles era “evidentemente a pedra angular” de tudo o que fazia. Não fosse a ajuda judaica no trabalho administrativo e policial - agrupamento de judeus em Berlim -, feito inteiramente pela polícia judaica teria acorrido o caos absoluto. Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas, tudo seria diferente. Esta ajuda permitiu nas palavras de Eichmann salvar “o melhor material biológico” (Arendt, 2013, p. 54). Arendt conclui: para o judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição do seu próprio povo é, sem dúvida, um dos capítulos mais sombrio de toda a sua história de sombras (Arendt, 2013, p. 134). Arendt refere que os documentos sobre os quais se apoiam as suas reportagens denunciam o trabalho de funcionários judeus que desempenhavam funções que iam da compilação de listas sobre outros judeus e seus bens, até ao comércio das estrelas amarelas (Arendt, 2013, p. 134/35).  


Foram responsáveis pelo salvamento de alguns dos seus, mas apenas daqueles que julgavam importantes, “os judeus menos “famosos” eram constantemente sacrificados”. Arendt constrói uma analogia assaz interessante: estes judeus sentiam-se como capitães, que para salvar o navio do naufrágio, atiravam ao mar parte da sua preciosa carga. Com cem vítimas salvavam mil, com mil salvavam 10 mil (Arend, 2013, p. 144/45). 

Em Amesterdão assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda a confiança ao compilar as listas das pessoas e das suas propriedades, ao reterem o dinheiro dos deportados para abaterem as despesas da sua deportação e extermínio, ao controlarem os apartamentos vazios, ao suprirem forças policiais para ajudarem a prender os judeus e conduzirem-nos aos comboios, e até, num último gesto, ao entregarem os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco final (Arendt, 2013, p. 134).

Para os Conselho de Judeus existiam “princípios sagrados” que ajudavam a selecionar os judeus para a salvação e esses princípios centravam-se nos “judeus mais importantes”. A “carga era aliviada” com os judeus debaixo e proteção dos judeus de cima, i.e., eram selecionados para salvação os judeus mais importantes e esta responsabilidade era outorgada, pelos nazis, aos Conselhos Judaicos que elaboravam “listas de transportes” com “a idade, sexo, profissão e país de origem”.  A aceitação de categorias privilegiadas, entre outras funções de colaboração com os nazis, foi o começo do colapso da respeitável sociedade judaica.


A culpa de Eichmann provinha da sua obediência. E a sua obediência levou-o à condenação à morte. 

As irregularidades e anomalias do julgamento de Eichmann em Jerusalém foram imensas e de grande complexidade legal.  

Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica, e Heinrich Blücher, recém-casados, foram capturados e enviados para o campo de concentração em 1940. Após a sua fuga do campo de concentração de Gurs, Hannah relata a situação desumana em que viviam os presos: violações, brutalidade, fome, imundície e medo fizeram parte da sua rotina durante os sete meses de confinamento forçado, na companhia de outras mulheres.

Mas as suas reportagens fizeram emergir o que de pior existe nos seus opositores fanáticos. Foi considerada, por muitos, antissemita e acusada de nutrir ódio contra o seu próprio povo. Foi, igualmente, designada de Hannah Eichmann. 

Este texto que tem como base o livro Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, expõe-nos as seguintes e atuais problemáticas:

a) a maneira como, Eichmann foi retratado pelos mass media e consequente instrumentalização dos jornalistas pelo emergente poder israelita; 

b) a importância de Hannah Arendt na luta e busca da verdade face à demanda israelita e pressão da opinião pública; 

c) este foi um julgamento para condenar as atrocidades nazis contra os judeus, esquecendo outras vítimas, como é o caso dos ciganos, que foram, igualmente, perseguidos e que tiveram proporcionalmente tantas pessoas perseguidas, gaseadas e queimadas vivas quanto tiveram os judeus. 

c) este é um julgamento que descreve a imposição da estrela de David aos judeus, mas ignora os triângulos que identificavam outras vítimas dos nazis, como por exemplo: a) o triângulo castanho (imposto aos ciganos:  rom ou Roma, sinti, calons ou calés); b) o triângulo vermelho (imposto aos dissidentes políticos: comunistas, sociais-democratas, anarquistas) e o triângulo rosa (imposto aos homossexuais), entre outros. 

Sobre a segunda guerra mundial constatamos que existe uma campanha monopolista na imprensa, na televisão, no cinema, na rádio, nos teatros, na literatura, entre outros, que é favorável e contribui para o esclarecimento do que aconteceu aos judeus que foram vítimas das atrocidades e do horror nazi. O mesmo não se passa com as cumplicidades dos judeus que colaboraram com o regime nazi na matança do seu povo, como relata Hannah Arendt neste seu importantíssimo livro. A “carga era aliviada” com os judeus debaixo e proteção dos judeus de cima”, entrou no esquecimento geral, da mesma maneira que a colaboração dos principais países europeus com a ascensão e rearmamento da Alemanha nazi. Nem todos os alemães foram nazis, da mesma forma que nem todos os judeus foram vítimas. Nenhum indivíduo pode transportar uma culpa coletiva.  

Neste julgamento fica claro que nada escapa aos reguladores da moral judaica, “puxam pelos galões”, mas, como demonstra Hannah Arendt estão desconectados da realidade. Ou será que não estão?  Será que iniciaram aqui, com este julgamento e antes com a constituição do estado de Israel, uma “nova realidade”? 


A história deve investigar e produzir conhecimento que nos permita pôr em causa os juízos estabelecidos. É necessário que a história, propriamente dita, seja critica, fundamentada em análises dos textos, na verificação dos testemunhos e que não admita “caiar” os factos ou manipulando-os de acordo com interesses estabelecidos. “O manipulador da “memória” tenta alcançar a visão total, mas a sua consciência não consegue captar de uma só vez mais do que sinais dos pequenos instantes. (Coelho, 2020, p. 14).

As verdades, quando não submetidas a permanentes questionamentos, podem perder o efeito da verdade pelo exagero da falsidade. Hannah Arendt não se intimidou com os seus delatores, e contra tudo e contra todos, muito nos ajudou a aproximarmo-nos da pluralidade de acontecimentos e atores que emergiram e se movimentaram, antes e após a Segunda Guerra Mundial. A publicação deste seu livro faz parte desse enorme contributo. 

Bibliografia

Arend, H. (2013). Eichmann em Jerusalém Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Brasil: Editora Schwarcz.

Coelho, A. B. (2020). História e Oficiais da História . Lisboa: Caminho.




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