Diferença: construção social
Desde que
as sociedades existem e desenvolvem relações entre si a problemática da diferença existe enquanto fator de
demarcação. Não é provável, pois, que exista uma cultura tão isolada que não
tenha nenhuma espécie de relação com outras. Se isto é um axioma, dele decorre
que a perceção da alteridade é um fenómeno universal e, consequentemente, a diferença é uma constante na história da
humanidade.
A
expansão das civilizações greco-romanas, os descobrimentos ibéricos, a formação
dos grandes impérios coloniais e, mais recentemente, a globalização são
momentos particularmente interessantes para compreender o modo imagético como o
Ocidente construiu imagens poderosas para enclausurar o Outro em posições de
inferioridade. A domesticação das diferenças é um legado da Antiguidade Grega.
O conceito de bárbaro começou por
designar simplesmente os povos não gregos, os considerados estrangeiros, os metecos, vindo mais tarde a considerar
como bárbaros todos os povos
diferentes deles, por estes não expressarem consideração pela polis, pela língua helénica e pelos
ideais literários e artísticos das cidades-estados (cf. Mossé, [1993] 1999).
A
partir do século XVIII, a leitura das narrativas do passado adquire uma nova
dimensão. A ilustração passa a compreender a história em termos do
desenvolvimento do espírito humano enfatizando a explicação das desigualdades a
partir da natureza. O selvagem, como singularidade exótica, transmuta-se em homem dos primórdios
da humanidade, o primitivo. A
conceção de natureza humana universal
ou a noção de humanidade, descrita
por Lévi-Strauss ([1952] 2006), faz
desaparecer a ideia de selvagem como
construção exótica. As novas conceções admitem que as diferenças de costumes podem ser lidas como um grande mapa da
humanidade e, consequentemente, explicar as várias etapas da evolução humana.
Até
ao início da segunda Guerra Mundial, diversos biólogos, naturalistas, médicos,
entre outros, contribuíram com os seus estudos para a definição conceptual das
diferenças humanas em termos de raça,
adquirindo a cultura uma nova importância. A racialização das diferenças foi um
processo que se construiu e desenvolveu, sobretudo, em contextos coloniais. A
distância cultural que separa o nativo da metrópole faz emergir uma cultura
detentora de especificidades própria. É homogénea, com hábitos e valores
simbólicos sustentados e não comparáveis: a racialização transmuta-se
progressivamente, num processo de etnicização (cf.
Fernandes, 1998; Machado F. L, 2002). Com este processo, que sucede com
o fim da segunda Guerra Mundial e da ideologia nazi, que defendia a
superioridade e a pureza racial, as explicações pela raça entram em declínio. Para isso, tem contribuído, em particular,
a UNESCO que convidou reputados investigadores de diferentes áreas do conhecimento
científico para construírem uma nova abordagem desta problemática. As
referências à raça desaparecem
substituindo-a por referências às diferenças étnicas e culturais. (Machado F.
L., 2002: 327).
As
diferenças manifestam-se através de declarações de pertença e de não pertença,
de inclusão e de exclusão: “é suficiente para ‘nós’ estabelecer essas
fronteiras na nossa mente; por conseguinte, ‘eles’ tornam-se ‘eles’, e tanto o
território como a mentalidade ‘deles’ são referidos como sendo diferentes dos “nossos”
(Said, 1997: 62). A diferença não é neutra, razão pela qual desenvolve tensões
e conflitos, receios e inquietações (Wieviorka,
[1992]1995; Touraine, 1998). A diferenciação apoia-se nas
particularidades atribuídas de forma imutável aos grupos e generalizadas a
todos os seus membros (Amâncio, 1994). No
entanto, estas características “são mutáveis e não definitivas, são abertas e
não fechadas” (Machado F. L., 2002: 32 ), podem
ser constantemente reinventadas e reinterpretadas (Herskovits, [1948]1952, citado por Cuche, 1999: 170), e permitem a
emergência de culturas sincréticas
(Cuche, 1999: 82; Robertson, 1992: 66), mestiças (Wieviorka, 2002: 80),
integrando num mesmo sistema elementos tomados de empréstimo doutras culturas (Sapir, 1949, citado por Cuche: 61).
A
construção da diferença não era neutra, estava associada à desigualdade e à discriminação.
Este processamento de diferenciação simbólica manifesta-se na desumanização do outro (Amâncio, 1994), tendo sido “justificada pela
Igreja e pelo Estado na base de que as pessoas têm distintas naturezas, e
algumas naturezas são melhores que outras”
(Young, 2000: 264). Na tradição, explica Iris Young, a lei e as normas
sociais definiam os direitos, os privilégios e obrigações de maneira diferente
nos diversos grupos que se distinguiam por características de sexo, raça,
religião, classe social ou pelo exercício da profissionalidade/ocupação.
Young considera que, com a emergência do iluminismo, se
anuncia uma nova conceção revolucionária da humanidade e da sociedade: todas as
pessoas são iguais, na medida em que todas têm uma capacidade para a razão e
para o sentido moral. Os ideais de liberdade e igualdade, defendidos pelo
iluminismo, inspiraram e inspiram movimentos contra a opressão e a dominação,
cujo êxito permitiu que se criassem valores e instituições sociais que
constituem o alicerce das sociedades contemporâneas.
Young
admite que é necessário insistir na igualdade e na liberdade pelo facto de a
diferença entre grupos continuar a existir, não se podendo, por isso, ignorar
estas diferenças porque elas têm consequências opressivas em três sentidos: em
primeiro lugar, a cegueira frente à diferença põe em situação de desvantagem os
grupos cuja experiência cultural e as capacidades socializadas diferem das que
têm os grupos privilegiados; em segundo lugar, o ideal de uma humanidade
universal sem diferenças de grupos sociais tende a que sejam os grupos
dominantes a definir as normas da humanidade em geral; em terceiro lugar, estes
grupos que se desviam de um critério, supostamente, neutral tendem a uma
desvalorização internalizada por parte dos membros desses mesmos grupos (cf. Young, 2000: 276-278).
Os
diferentes grupos compartilham algumas similaridades em alguns aspetos e sempre
compartilham potencialmente alguns atributos, experiências e objetivos. A
alternativa a um significado de diferença, que essencializa e estigmatiza, é
uma compreensão da diferença como especificidade e variação. A compreensão relacional da diferença cria uma
oportunidade para refletir acerca da identidade e, para se compreender
igualmente, a necessidade de construção de novos significados para a identidade
de grupo (cf. Young, 2000: 288-290).
Referencias Bibliográficas
Amâncio, L. (1994). A Construção
Social da Diferença. Porto: Edições Afrontamento.
Cuche, D. (1999). A Noção de Cultura
nas Ciências Sociais. Lisboa: Fim de Século Edições.
Lévi-strauss, C. ([1952] 2006). Raça
e História. Lisboa: Editorial Presença.
Machado, F. L. (2002). Contrastes e
Continuidades - Migrações, Etnicidade e Integração dos Guineenses em Portugal.
Lisboa: Celta Editora.
Mossé, C. ([1993] 1999). O Cidadão
na Grécia Antiga. Lisboa: Edições 70.
Said, E. W. (1997). Orientalismo.
Lisboa: Livros Cotovia.
Touraine, A. (1998). Iguais e
Diferentes - Podemos Viver Juntos. Lisboa: Instituto Piaget.
Wieviorka, M. ([1992]1995). Racismo
e Modernidade. Lisboa: Bertrand Editora.
Young, I. M. (2000). La Justicia y
la Política de la Diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra.
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