quarta-feira, setembro 05, 2012


Diferença: construção social        
 
(Carlos Jorge, Doutor em Sociologia, Especialidade: Relações Interculturais)

 

Desde que as sociedades existem e desenvolvem relações entre si a problemática da diferença existe enquanto fator de demarcação. Não é provável, pois, que exista uma cultura tão isolada que não tenha nenhuma espécie de relação com outras. Se isto é um axioma, dele decorre que a perceção da alteridade é um fenómeno universal e, consequentemente, a diferença é uma constante na história da humanidade.

 

A expansão das civilizações greco-romanas, os descobrimentos ibéricos, a formação dos grandes impérios coloniais e, mais recentemente, a globalização são momentos particularmente interessantes para compreender o modo imagético como o Ocidente construiu imagens poderosas para enclausurar o Outro em posições de inferioridade. A domesticação das diferenças é um legado da Antiguidade Grega. O conceito de bárbaro começou por designar simplesmente os povos não gregos, os considerados estrangeiros, os metecos, vindo mais tarde a considerar como bárbaros todos os povos diferentes deles, por estes não expressarem consideração pela polis, pela língua helénica e pelos ideais literários e artísticos das cidades-estados (cf. Mossé, [1993] 1999).

 

A partir do século XVIII, a leitura das narrativas do passado adquire uma nova dimensão. A ilustração passa a compreender a história em termos do desenvolvimento do espírito humano enfatizando a explicação das desigualdades a partir da natureza. O selvagem, como singularidade exótica, transmuta-se em homem dos primórdios da humanidade, o primitivo. A conceção de natureza humana universal ou a noção de humanidade, descrita por Lévi-Strauss ([1952] 2006), faz desaparecer a ideia de selvagem como construção exótica. As novas conceções admitem que as diferenças de costumes podem ser lidas como um grande mapa da humanidade e, consequentemente, explicar as várias etapas da evolução humana.

 

Até ao início da segunda Guerra Mundial, diversos biólogos, naturalistas, médicos, entre outros, contribuíram com os seus estudos para a definição conceptual das diferenças humanas em termos de raça, adquirindo a cultura uma nova importância. A racialização das diferenças foi um processo que se construiu e desenvolveu, sobretudo, em contextos coloniais. A distância cultural que separa o nativo da metrópole faz emergir uma cultura detentora de especificidades própria. É homogénea, com hábitos e valores simbólicos sustentados e não comparáveis: a racialização transmuta-se progressivamente, num processo de etnicização (cf. Fernandes, 1998; Machado F. L, 2002). Com este processo, que sucede com o fim da segunda Guerra Mundial e da ideologia nazi, que defendia a superioridade e a pureza racial, as explicações pela raça entram em declínio. Para isso, tem contribuído, em particular, a UNESCO que convidou reputados investigadores de diferentes áreas do conhecimento científico para construírem uma nova abordagem desta problemática. As referências à raça desaparecem substituindo-a por referências às diferenças étnicas e culturais. (Machado F. L., 2002: 327).

 

As diferenças manifestam-se através de declarações de pertença e de não pertença, de inclusão e de exclusão: “é suficiente para ‘nós’ estabelecer essas fronteiras na nossa mente; por conseguinte, ‘eles’ tornam-se ‘eles’, e tanto o território como a mentalidade ‘deles’ são referidos como sendo diferentes dos “nossos” (Said, 1997: 62). A diferença não é neutra, razão pela qual desenvolve tensões e conflitos, receios e inquietações (Wieviorka, [1992]1995; Touraine, 1998). A diferenciação apoia-se nas particularidades atribuídas de forma imutável aos grupos e generalizadas a todos os seus membros (Amâncio, 1994). No entanto, estas características “são mutáveis e não definitivas, são abertas e não fechadas” (Machado F. L., 2002: 32 ), podem ser constantemente reinventadas e reinterpretadas (Herskovits, [1948]1952, citado por Cuche, 1999: 170), e permitem a emergência de culturas sincréticas (Cuche, 1999: 82; Robertson, 1992: 66), mestiças (Wieviorka, 2002: 80), integrando num mesmo sistema elementos tomados de empréstimo doutras culturas (Sapir, 1949, citado por Cuche: 61).

 

A construção da diferença não era neutra, estava associada à desigualdade e à discriminação. Este processamento de diferenciação simbólica manifesta-se na desumanização do outro (Amâncio, 1994), tendo sido “justificada pela Igreja e pelo Estado na base de que as pessoas têm distintas naturezas, e algumas naturezas são melhores que outras” (Young, 2000: 264). Na tradição, explica Iris Young, a lei e as normas sociais definiam os direitos, os privilégios e obrigações de maneira diferente nos diversos grupos que se distinguiam por características de sexo, raça, religião, classe social ou pelo exercício da profissionalidade/ocupação.

 

Young considera que, com a emergência do iluminismo, se anuncia uma nova conceção revolucionária da humanidade e da sociedade: todas as pessoas são iguais, na medida em que todas têm uma capacidade para a razão e para o sentido moral. Os ideais de liberdade e igualdade, defendidos pelo iluminismo, inspiraram e inspiram movimentos contra a opressão e a dominação, cujo êxito permitiu que se criassem valores e instituições sociais que constituem o alicerce das sociedades contemporâneas.

 

Young admite que é necessário insistir na igualdade e na liberdade pelo facto de a diferença entre grupos continuar a existir, não se podendo, por isso, ignorar estas diferenças porque elas têm consequências opressivas em três sentidos: em primeiro lugar, a cegueira frente à diferença põe em situação de desvantagem os grupos cuja experiência cultural e as capacidades socializadas diferem das que têm os grupos privilegiados; em segundo lugar, o ideal de uma humanidade universal sem diferenças de grupos sociais tende a que sejam os grupos dominantes a definir as normas da humanidade em geral; em terceiro lugar, estes grupos que se desviam de um critério, supostamente, neutral tendem a uma desvalorização internalizada por parte dos membros desses mesmos grupos (cf. Young, 2000: 276-278).

 

Os diferentes grupos compartilham algumas similaridades em alguns aspetos e sempre compartilham potencialmente alguns atributos, experiências e objetivos. A alternativa a um significado de diferença, que essencializa e estigmatiza, é uma compreensão da diferença como especificidade e variação. A compreensão relacional da diferença cria uma oportunidade para refletir acerca da identidade e, para se compreender igualmente, a necessidade de construção de novos significados para a identidade de grupo (cf. Young, 2000: 288-290).

 

 

Referencias Bibliográficas

Amâncio, L. (1994). A Construção Social da Diferença. Porto: Edições Afrontamento.

Cuche, D. (1999). A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Lisboa: Fim de Século Edições.

Lévi-strauss, C. ([1952] 2006). Raça e História. Lisboa: Editorial Presença.

Machado, F. L. (2002). Contrastes e Continuidades - Migrações, Etnicidade e Integração dos Guineenses em Portugal. Lisboa: Celta Editora.

Mossé, C. ([1993] 1999). O Cidadão na Grécia Antiga. Lisboa: Edições 70.

Said, E. W. (1997). Orientalismo. Lisboa: Livros Cotovia.

Touraine, A. (1998). Iguais e Diferentes - Podemos Viver Juntos. Lisboa: Instituto Piaget.

Wieviorka, M. ([1992]1995). Racismo e Modernidade. Lisboa: Bertrand Editora.

Young, I. M. (2000). La Justicia y la Política de la Diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra.

 

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