quinta-feira, março 09, 2023

Era fundamental que a praça do império mudasse de nome  

 

Proposta de Beatriz Gomes Dias no jornal publico de Hoje  

(sábado 04 de Março de 2023) 

 

    Ao longo da história, muitas culturas e grupos étnicos foram forçados a adaptar-se às tradições e crenças dos conquistadores e/ou colonizadores. Os judeus foram um exemplo disso, quando muitos foram cristianizados à força ou sofreram perseguição por causa da sua religião. As mesquitas foram destruídas e substituídas por igrejas como parte do processo de conversão dos muçulmanos. Os escravos, foram batizados para receber nomes cristãos como parte do processo de assimilação à cultura dominante. Da mesma forma, os ciganos foram frequentemente tratados como pessoas de segunda classe e foram forçados a adaptar-se aos costumes e tradições da sociedade dominante. 

As mulheres foram frequentemente subjugadas e limitadas nos seus papéis sociais, sendo consideradas principalmente como mães e cuidadoras. No entanto, as lutas feministas ao longo do tempo ajudaram a mudar essa perceção e a abrir caminho para uma progressiva igualdade de género. 

 

    Hoje em dia, a sociedade está cada vez mais consciente da importância da inclusão e da valorização da diversidade cultural. Isso reflete-se em iniciativas como a substituição de nomes de ruas que homenageiam figuras históricas controversas ou perpetuam estereótipos prejudiciais. As cidades estão a escolher nomes que reflitam a diversidade e a inclusão da população atual. 

 

    Embora ainda haja muito a ser feito para garantir a igualdade e a justiça social em todas as áreas da sociedade, é encorajador ver que as pessoas estão cada vez mais conscientes e comprometidas em promover a diversidade e a inclusão nas suas comunidades. 

 

    Embora a mudança de nomes de ruas seja uma tendência recente, é verdade que a história está repleta de exemplos de grupos minoritários que foram forçados a adaptar-se à cultura dominante. 

 

    No entanto, a grande diferença é que hoje procuramos ativamente valorizar a diversidade cultural e promover a inclusão invés de continuar a impor a cultura dominante sobre as minorias. A substituição dos nomes de ruas são uma tentativa de resposta as necessárias mudanças de mentalidade, mostrando que estamos dispostos a (re)conhecer o passado e trabalhar para criar um futuro mais inclusivo e igualitário. 

 

    Mas, é importante destacar que as mudanças dos nomes de ruas não são uma solução mágica para resolver os problemas históricos de exclusão e opressão. É necessário continuar a lutar e trabalhar para promover a justiça social e garantir que todas as pessoas sejam igualmente valorizadas e respeitadas. 

 

    De facto, substituir nomes de ruas não é diferente do que sempre se fez e que narrei na parte inicial deste texto e pode ser interpretado como uma forma de apagar ou destruir a história. Por isso considero que se deve explicar e colocar documentação adequada sobre as razões originais dos nomes e o contexto histórico em que foram escolhidos. Acabemos com a cultura de substituir o velho e dominante pelo “novo dominante”.  

 

 

    Não é necessário destruir as peças de arte, edifícios ou outras estruturas históricas que contêm representações de pessoas escravizadas ou foram construídos por mão-de-obra operária explorada. Esses objetos e locais são parte da história e da cultura humanas e podem ser usados como oportunidades para aprender e educar sobre as injustiças do passado. 

 

    No entanto, é importante contextualizar essas representações e estruturas, informando sobre a história da escravidão e da exploração para que sejam compreendidas na sua totalidade e não romantizadas. Podemos também adicionar informações explicativas sobre a mão-de-obra operária explorada que construiu vilas, cidades e outros locais, a fim de consciencializar as pessoas sobre as desigualdades sociais e económicas que historicamente ocorreram. 

 

    Nesse sentido, uma alternativa interessante seria manter os nomes originais das ruas, mas incluir lápides alusivas e explicativas, fornecendo informações adicionais sobre a história e o contexto em que foram escolhidos. Isso permitiria que as pessoas aprendessem mais sobre a história local e sua diversidade cultural, sem apagar o passado. 

 

    É importante lembrar que a história não é estática e está sempre em evolução. Ao mesmo tempo, a preservação da memória coletiva é fundamental para compreendermos o presente e planearmos o futuro. Portanto, a inclusão de informações explicativas sobre os nomes das ruas pode ser uma solução viável para conciliar a preservação da história com a promoção da diversidade e da inclusão independentemente da sua origem ou identidade. 

segunda-feira, junho 07, 2021

Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal - Hannah Arendt

 Eichmann em Jerusalém

Um relato sobre a banalidade do mal

Hannah Arendt




A imprensa internacional noticiou em Maio de 1960 a captura do ex-oficial nazi Otto Adolfo Eichmann, num subúrbio da cidade de Buenos Aires, na argentina. Adolfo Eichmann foi raptado pelos serviços secretos de Israel e levado para Jerusalém para ser julgado na Casa da Justiça (“Beth Hamishpath”): pelos crimes praticados durante a Segunda Grande Guerra Mundial, sobretudo por estar implicado na organização da “Solução Final.

A cobertura do julgamento foi efetuada por diferentes meios de comunicação internacionais. Em representação da Revista New Yorker esteve Hannah Arendt. A cobertura deste julgamento despertou uma acesa discussão entre jornalista e académicos. As reportagens de Arendt para o New Yorker  surpreenderam a comunidade intelectual que se dividiu entre acusadores e defensores das suas opiniões sobre o julgamento e os crimes cometidos pelos nazis durante o conflito. Alguns, sobretudo judeus, transformaram-na num alvo a abater.   Arendt nas suas reportagens mostra que ao contrário de vilões e vítimas, neste julgamento existiam pessoas comuns que sobreviveram à sangrenta Segunda Guerra Mundial. 

As reportagens de Hannah Arendt e o livro que viria a publicar mais tarde (maio de 1963), acerca do julgamento de Adolf Eichmann, permanecem atuais e, por isso, nos convoca para a necessária reflexão, como observaremos.  


Arendt relata, nas reportagens que fez para o New Yorker, que na primeira semana do julgamento de Eichmann, este já tinha sido sentenciado e culpabilizado pelos correspondentes dos jornais presentes, e pela opinião pública em geral. Este julgamento provocou uma grande discussão sobre a ética e o jornalismo. Discussão que se mantêm na atualidade. 


O julgamento direcionou a atenção dos mass media para a necessária discussão sobre a bestialidade dos crimes do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. O julgamento de Eichmann voltou a centrar as atrocidades do regime nazi na agenda política. Diferentes narrativas espoletaram. A da Hannah Arendt com uma leitura critica e incisiva, e outras com perceções mais emocionais, como foi, entre outras, o caso da do Comité Judaico Americano. 

  O julgamento transformou-se num espectáculo que emergiu como consequência da paixão do promotor pela teatralidade. Esta teatralização do julgamento, segundo Arendt, decorria dos interesses do primeiro-ministro David Ben-Gurion. “A lógica do julgamento de Eichmann, conforme concebido por Ben-Gurion, com ênfase em questões gerais, em detrimento de subtilezas legais, exigiria a exposição da cumplicidade de todos os funcionários e autoridades alemães na Solução Final” (Arendt, 2013, p. 29). Ben-Guiron era o diretor de cena deste processo. 

Este julgamento, para Ben-Gurion,   mostraria o que era viver entre não-judeus, e convencê-los-ia de que só em Israel um judeu teria segurança e poderia viver com honra (Arend, 2013, p. 18). Mas Hannah Arendt não se intimidou e não condescendeu fazendo uma das afirmações mais polémicas e inovadoras em termos (in)formativos da sua carreira: a cooperação das organizações judaicas com o nazismo. “Era Realpolitik sem tons maquiavélicos, e seus perigos vieram à luz anos depois, quando eclodiu a guerra, quando esses contactos diários entre as organizações judaicas e a burocracia nazi tornaram tão fácil para os funcionários judeus atravessar o abismo entre ajudar os judeus a escapar ou ajudar os nazis a deportá-los.)” (Arendt, 2013, p. 21)

Os judeus que muito contribuiriam para a construção da história de Eichmann, e dela fazer algo de verosímil, eram os sionistas com que o ex-oficial   estabeleceu ligações nos seus primeiros tempos de serviço na inteligência do partido nazi. O sucesso dos nazis deve-se muito a este grupo que foi capaz de promover campanhas apoiadas por judeus influentes, que inclusive estimulavam o uso da estrela que os identificava mesmo antes da sua obrigatoriedade. Para este grupo de judeus a ascensão de Hitler trazia vantagens e uma atmosfera de vitória em relação aos (judeus) assimilacionistas que pretendiam viver na Europa, como Europeus.  


A cooperação deles era “evidentemente a pedra angular” de tudo o que fazia. Não fosse a ajuda judaica no trabalho administrativo e policial - agrupamento de judeus em Berlim -, feito inteiramente pela polícia judaica teria acorrido o caos absoluto. Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas, tudo seria diferente. Esta ajuda permitiu nas palavras de Eichmann salvar “o melhor material biológico” (Arendt, 2013, p. 54). Arendt conclui: para o judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição do seu próprio povo é, sem dúvida, um dos capítulos mais sombrio de toda a sua história de sombras (Arendt, 2013, p. 134). Arendt refere que os documentos sobre os quais se apoiam as suas reportagens denunciam o trabalho de funcionários judeus que desempenhavam funções que iam da compilação de listas sobre outros judeus e seus bens, até ao comércio das estrelas amarelas (Arendt, 2013, p. 134/35).  


Foram responsáveis pelo salvamento de alguns dos seus, mas apenas daqueles que julgavam importantes, “os judeus menos “famosos” eram constantemente sacrificados”. Arendt constrói uma analogia assaz interessante: estes judeus sentiam-se como capitães, que para salvar o navio do naufrágio, atiravam ao mar parte da sua preciosa carga. Com cem vítimas salvavam mil, com mil salvavam 10 mil (Arend, 2013, p. 144/45). 

Em Amesterdão assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda a confiança ao compilar as listas das pessoas e das suas propriedades, ao reterem o dinheiro dos deportados para abaterem as despesas da sua deportação e extermínio, ao controlarem os apartamentos vazios, ao suprirem forças policiais para ajudarem a prender os judeus e conduzirem-nos aos comboios, e até, num último gesto, ao entregarem os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco final (Arendt, 2013, p. 134).

Para os Conselho de Judeus existiam “princípios sagrados” que ajudavam a selecionar os judeus para a salvação e esses princípios centravam-se nos “judeus mais importantes”. A “carga era aliviada” com os judeus debaixo e proteção dos judeus de cima, i.e., eram selecionados para salvação os judeus mais importantes e esta responsabilidade era outorgada, pelos nazis, aos Conselhos Judaicos que elaboravam “listas de transportes” com “a idade, sexo, profissão e país de origem”.  A aceitação de categorias privilegiadas, entre outras funções de colaboração com os nazis, foi o começo do colapso da respeitável sociedade judaica.


A culpa de Eichmann provinha da sua obediência. E a sua obediência levou-o à condenação à morte. 

As irregularidades e anomalias do julgamento de Eichmann em Jerusalém foram imensas e de grande complexidade legal.  

Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica, e Heinrich Blücher, recém-casados, foram capturados e enviados para o campo de concentração em 1940. Após a sua fuga do campo de concentração de Gurs, Hannah relata a situação desumana em que viviam os presos: violações, brutalidade, fome, imundície e medo fizeram parte da sua rotina durante os sete meses de confinamento forçado, na companhia de outras mulheres.

Mas as suas reportagens fizeram emergir o que de pior existe nos seus opositores fanáticos. Foi considerada, por muitos, antissemita e acusada de nutrir ódio contra o seu próprio povo. Foi, igualmente, designada de Hannah Eichmann. 

Este texto que tem como base o livro Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, expõe-nos as seguintes e atuais problemáticas:

a) a maneira como, Eichmann foi retratado pelos mass media e consequente instrumentalização dos jornalistas pelo emergente poder israelita; 

b) a importância de Hannah Arendt na luta e busca da verdade face à demanda israelita e pressão da opinião pública; 

c) este foi um julgamento para condenar as atrocidades nazis contra os judeus, esquecendo outras vítimas, como é o caso dos ciganos, que foram, igualmente, perseguidos e que tiveram proporcionalmente tantas pessoas perseguidas, gaseadas e queimadas vivas quanto tiveram os judeus. 

c) este é um julgamento que descreve a imposição da estrela de David aos judeus, mas ignora os triângulos que identificavam outras vítimas dos nazis, como por exemplo: a) o triângulo castanho (imposto aos ciganos:  rom ou Roma, sinti, calons ou calés); b) o triângulo vermelho (imposto aos dissidentes políticos: comunistas, sociais-democratas, anarquistas) e o triângulo rosa (imposto aos homossexuais), entre outros. 

Sobre a segunda guerra mundial constatamos que existe uma campanha monopolista na imprensa, na televisão, no cinema, na rádio, nos teatros, na literatura, entre outros, que é favorável e contribui para o esclarecimento do que aconteceu aos judeus que foram vítimas das atrocidades e do horror nazi. O mesmo não se passa com as cumplicidades dos judeus que colaboraram com o regime nazi na matança do seu povo, como relata Hannah Arendt neste seu importantíssimo livro. A “carga era aliviada” com os judeus debaixo e proteção dos judeus de cima”, entrou no esquecimento geral, da mesma maneira que a colaboração dos principais países europeus com a ascensão e rearmamento da Alemanha nazi. Nem todos os alemães foram nazis, da mesma forma que nem todos os judeus foram vítimas. Nenhum indivíduo pode transportar uma culpa coletiva.  

Neste julgamento fica claro que nada escapa aos reguladores da moral judaica, “puxam pelos galões”, mas, como demonstra Hannah Arendt estão desconectados da realidade. Ou será que não estão?  Será que iniciaram aqui, com este julgamento e antes com a constituição do estado de Israel, uma “nova realidade”? 


A história deve investigar e produzir conhecimento que nos permita pôr em causa os juízos estabelecidos. É necessário que a história, propriamente dita, seja critica, fundamentada em análises dos textos, na verificação dos testemunhos e que não admita “caiar” os factos ou manipulando-os de acordo com interesses estabelecidos. “O manipulador da “memória” tenta alcançar a visão total, mas a sua consciência não consegue captar de uma só vez mais do que sinais dos pequenos instantes. (Coelho, 2020, p. 14).

As verdades, quando não submetidas a permanentes questionamentos, podem perder o efeito da verdade pelo exagero da falsidade. Hannah Arendt não se intimidou com os seus delatores, e contra tudo e contra todos, muito nos ajudou a aproximarmo-nos da pluralidade de acontecimentos e atores que emergiram e se movimentaram, antes e após a Segunda Guerra Mundial. A publicação deste seu livro faz parte desse enorme contributo. 

Bibliografia

Arend, H. (2013). Eichmann em Jerusalém Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Brasil: Editora Schwarcz.

Coelho, A. B. (2020). História e Oficiais da História . Lisboa: Caminho.




sábado, junho 06, 2020

A Mentira e o Mentiroso


“Quando ligo o rádio e ouço que, na América, os pretos são linchados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo o radio e ouço que judeus são insultados, desprezados, massacrados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo enfim o rádio e ouço que na África o trabalho forçado está instituído, legalizado, digo que, na verdade, nos mentiram: Hitler não morreu.”
Frantz Fanon
Pele Negra Máscaras Brancas Pele pág. 88


Recebi do meu amigo, J.S., um e-mail com dois anexos assaz interessantes. Têm ambos um valor simbólico, muitíssimo importante, para mim: um com o título “A Política”, por Rafael Bordalo Pinheiro, e o outro, intitulado “De Relance”, é um texto de J. Alberto de Oliveira.

Rafael Bordalo Pinheiro é uma figura da cultura nacional oitocentista. Viveu entre o final do último quartel do século dezanove e o início do século XX. É um nome que está intrinsecamente ligado, entre outros, à caricatura e ao humor. Foi, também, ilustrador, jornalista e ceramista. Foi, na sua época, um paladino da crítica política. Foi corrosivo, acutilante e sar­cástico com todos os agentes políticos do seu tempo. Manuel António Botas, meu trisavô, não escapou à sua crítica e às suas cáusticas caricaturas. O meu trisavô foi, no seu tempo, o inteligente da praça de Toiros do Campo Pequeno e, por isso, Bordalo Pinheiro o caricaturou, diversas vezes, nos jornais, sobretudo, nos tauromáquicos, e nas revistas da época. A pesquisa que desenvolvi, no âmbito da minha tese de doutoramento, proporcionou-me, através de Rafael Bordalo Pinheiro, o acesso a jornais e revistas da época que escreviam e ou desenhavam Botas num traço cheio de exageros e expressão grotesca ou jocosa. Bordalo Pinheiro caricaturava o inteligente Manuel António Botas no camarote presidencial da Praça de Toiros do Campo Pequeno com a sua cartola. A minha investigação propiciou-me, ainda, uma maior aproximação e um melhor conhecimento da figura de Bordalo Pinheiro.

Não fiquei, pois, surpreendido ao encontrar no e-mail do meu amigo J.S. algumas caricaturas interessantíssimas de Rafael Bordalo Pinheiro. O meu amigo J.S. sabe – por experiência, cooperação e auxílio generoso que me concedeu no passado e que permanece no presente –, o quanto eu admiro e prezo Rafael Bolado Pinheiro. 

O outro anexo ao e-mail, que contém o texto “De Relance”, de J. Alberto de Oliveira, é uma “pequena maravilha”. Propicia-nos uma magnífica sensação de deslumbramento e encanto; assombro, fascínio, pela qualidade da escrita e do exposto e, sobretudo, pelo modo coerente da sua construção. 

O texto está estruturado numa pergunta e numa resposta: «Sabeis o que significa ser ’puro de coração’»? – «Puro de coração é não ser trafulha».

Ora, para o autor, o trafulha é uma espécie de chico-esperto, matreiro (Datação: século XIII), intrujão (Datação: 1881), farsante (Datação: século XVII), patife (Datação: 1608), safado (datação: 1553), trapalhão (Datação: 1721), trampolineiro (Datação: 1858), trambiqueiro Datação: 1899), astuto (Datação; século XX), falcatrueiro (Datação: século XV). Resumindo: é um mentiroso em cada um dos vários sentidos que a palavra ou a frase representa de acordo com um determinado contexto e / ou denominações históricas.

Numa pesquisa rápida, no Dicionário Eletrónico Houaiss da língua Portuguesa, encontrei a datação de algumas das palavras utilizadas pelo autor do já citado texto “De Relance” e verifiquei que algumas destas palavras são usadas em períodos que decorrem entre o século XIII e o século XX. Estas palavras parecem conter uma memória dos seus significados anteriores.

Mas será que existem significados intrínsecos, verdadeiros ou reais, à margem dos contextos sociais, económicos, políticos, religiosos, étnicos, artísticos, científicos, filosóficos, e alheios às mudanças da própria natureza?

Não, não existem. As mudanças que se observam nas palavras e / ou na língua no decurso do tempo coabitam com as transformações dos conceitos de vida de uma sociedade, com a evolução que se vai operando a nível das artes, da filosofia, da ciência e, até, com as lentas modificações da própria natureza.

Então, é ou não possível afirmar que as palavras possuem significados cujo espectro semântico vai para além dos que lhes são dados? As palavras são como rótulos que colocamos nas coisas?

NIM?! As palavras são rótulos que facilitam a comunicação interpessoal, mas certas palavras mudam de significado ao longo do tempo e nas diferentes culturas. Ao longo do seu decurso histórico, as palavras e as línguas sofrem muitas transformações[1]: ajustam os sons; reor­ganizam as formas ou as manifestações externas do pensamento ou do sentimento; diversificam a disposição das palavras, a relação lógica das frases entre si; o estilo e a linguagem; o do signi­fi­cado e do significante.

A história de uma língua, à semelhança do que acontece com a história da humanidade, como referiu Michel Foucault, “não é uma duração: é uma multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos outros”. [2]

É, pois, inútil a minha tarefa de descobrir os reais significados de cada uma das palavras utilizadas no texto “De Relance”. Não é possível alcançar nenhuma informação definitiva e legitimada. A língua está em constante transformação, sofrendo modificações em diferentes contextos. A sociedade evolui e, com ela, as palavras não só originam outras, como adquirem, igualmente, outros significados. Subsistem palavras antigas que são, ainda, utilizadas por muitas pessoas. Formas verbais que já caíram em desuso, mas que permanecem e conflituam, por vezes, com outras. Mas elas existiram e fizeram parte da uma norma padrão. Podemos, então, dizer que o errado de hoje foi o correto de ontem. No entanto, uma reflexão crítica acerca da experiência histórica e social das palavras levar-nos-á a refletir sobre o conceito de errado e a percebermos que algumas das palavras usadas por muitas pessoas e que são entendidas como erradas são, na verdade, expressões antigas que pertenceram à norma padrão da língua portu­guesa, e ao seu léxico. Os tempos fizeram com que ingressassem a outros tempos, caindo em desuso, i. e., tornaram-se em arcaísmos. Muitos falantes são vítimas de preconceitos sociais e até de exclusão social por utilizarem palavras que não estão de acordo com uso da norma padrão da língua portuguesa. As palavras e as frases com códigos idênticos podem fazer emer­gir diferentes significados. Para além da variação regional, as línguas apresentam, igualmente, diferenças resultantes dos distintos grupos sociais, do escalão etário, do meio sociocultural, e dos grupos profissionais de pertença, entre outros. Daqui decorre a importância da escolarização e do ensino obrigatório e universal da língua e da literatura portuguesas que facultam o acesso à norma padrão e ao código elaborado em todos os níveis linguísticos.

O texto “De Relance” transporta em si mesmo um conjunto referencial de palavras que, como em todos nós, pulsa, agiganta-se, torna-se flexível, possui uma multiplicidade de cores, expande-se e vive. 


Mas a mentira e o mentiroso, no belo texto a que me refiro, transporta pressupostos e representações com consequências sociais. A mentira é uma das faces da representação da persona – uma variante da pluralidade das nossas representações. Produz efeitos sociais. É, também, a exteriorização da autonomia relativa que o sujeito tem, relativamente ao seu meio social. A produção social da mentira é construtora de um habitus. Tal prática social, tão disseminada, não surge nem se reproduz num vazio social. A mentira manifesta-se em todas as classes sociais. As ações humanas que lhe subjazem não sucedem casualmente, ocorrem susten­tadas em esquemas de pensamentos e ações que preveem um série de conhecimentos, perceções e hipóteses prévias que auxiliam na sua construção e formulação. É, portanto, intencional. E isto é reconhecido em todo o tipo de mentiras, das mais básicas às mais elaboradas e complexas. Quanto à dimensão moral das mentiras, interessa explicitar que ela é produto de manifestos antagonismos entre o indivíduo e o seu contexto social; entre atores com agendas próprias.

A mentira é uma prática social presente no quotidiano das nossas relações sociais e está presente em toda a sociedade humana. É encarada como uma prática socialmente reprovável, e contudo, é repetidamente usada, até mesmo por pessoas que, declaradamente, a desaprovam: Quem mente não vem de boa gente.

Nada é dito acerca do processo que leva uma mentira a ser contada. Assim sendo, não sabemos porque é que “trafulha é uma palavra que se inspira no escuro”. Para compreender o mentiroso e a mentira, é necessário sair do lugar em que foi colocado e compreender o men­tiroso e a mentira no âmbito da pluralidade de interações sociais em que podem surgir. Deso­cultemos, pois, o enigma retirando o mentiroso e a mentira do contexto amplificado em que o autor o colocou, libertando-o, assim, das amarras que o edificaram. Então, a mentira e o mentiroso, neste espaço de diversidade argumentativa, podem ser relacionados com uma faísca que ateia um rastilho. O rastilho pode, consequentemente, levantar explosões argumentativas, porém, quando a poeira assenta, a disputa definha. Ora, o que desejo é abordar o paradoxo do mentiroso como um desafio ao conhecimento, sobretudo, à coerência. Pretendo, por isso, organizar um pensamento, uma asserção, ou argumento, que se declare contraditório aos princípios básicos e gerais que costumam organizar o pensamento humano, ou que desafie a opinião consabida, a crença correspondente ao costume, à ordem normal, ao comummente partilhado, i.e., o paradoxo.

Autores de referência publicaram livros cuja temática se centra na figura do mentiroso e da mentira. Dois exemplos: Óscar Wilde escreveu O Declínio da Mentira e Almeida Garrett escreveu a peça de teatro Falar Verdade a Mentir.

 O mentiroso e a mentira desmascaram-se no contexto da relação interpessoal. Os recursos utilizados pelo mentiroso para contar as suas mentiras manifestam-se nos gestos com­portamentais, nas expressões faciais, na postura corporal e na entoação da voz. Ao mentir, o mentiroso simula ideias, sentimentos e emoções. Mas se esta caracterização da figura do mentiroso é parcialmente correta num determinado tempo histórico, não o é, todavia, no nosso tempo. A instrumentalização dos mass media (a televisão, a rádio, a imprensa, etc.) e, sobretudo, a Internet fez emergir uma outra figura do mentiroso: sem o rosto e amarras, sem as expressões corporais que o representavam. O mentiroso e a mentira exigem, agora, meios mais refinados para serem descobertos. O polígrafo e (alguns) outros instrumentos assentes na ciência dos dados possibilitam desvendar o novo tipo de mentira e o mentiroso.

As causas neurobiológicas do comportamento mentiroso não serão, por motivos óbvios, aqui debatidas, sobretudo os casos da mentira patológica, dos fenómenos criminosos, como crimes de fraude, entre outros comparáveis. Esta é uma exclusão problemática, eventualmente enganadora ou ingénua, pelo facto de a mentira e o mentiroso produzirem efeitos sociais de diferentes graus e, ainda, porque existe uma “escala da mentira” difícil de detetar, sendo, por isso, complicado categorizar o que está excluído, ou não, desta abordagem. A mentira é comum, e oculta as suas reais intenções: Na boca do mentiroso, o certo faz-se duvidoso.

Mas qual é a natureza da mentira? Por que se mente?

Para obtermos resposta(s) a estas duas perguntas, teremos de admitir a necessidade de seguir um método que nos permita a deteção da mentira. Ora, os métodos para a descoberta da mentira não são tão recentes quanto se possa pensar. Com efeito, há muito que existem algumas práticas sociais:

a) Na Idade Média, as mentiras estavam diretamente relacionadas com as crenças mágicas e / ou religiosas, e para se conseguir identificá-las, o (acusado) “mentiroso” poderia, entre outras práticas, ser torturado até dizer a “verdade”, ou colocado dentro de um saco e atirado para um lago: se se afundasse, seria considerado culpado, mas se flutuasse, seria inocente. Este procedimento sucedia porque, segundo uma crença cristã, o inocente teria a sua boa alma e, por alguma intervenção divina, salvar-se-ia;
b) Os donos de pessoas escravizadas consideravam-nas, entre o século XVI e XVIII, na Península Ibérica, como “gente infame, inquietos, revoltosos, ladrões, e tendentes a mentir aos seus amos”;
c) Alguns dicionários da língua portuguesa continuam a definir o cigano como impostor, i.e., “aquele que demonstra ou pratica impostura; embusteiro; que ou quem se aproveita da credulidade e da ignorância de outrem para ludibriá-lo; mentiroso, hipócrita.”;
d) Um falsificador de arte espera convencer o seu público de que a “obra de arte” que pretende vender é de um artista consagrado. No entanto, alguns artistas consagrados, eles próprios, criaram obras que são cópias da arte grega. Muitas das ditas “restaurações” do nosso património artístico e cultural (pinturas, castelos, tapeçarias, móveis, edifícios centenários, etc.) são adulteradas e, nalguns casos, sem limites éticos no que à trapaça diz respeito;
e) Um prisioneiro político, como foi o caso de alguns presos políticos portugueses, tenderiam a mentir aos esbirros da PIDE para preservarem um bem maior, a verdade. Calar ou mentir para não denunciar os seus camaradas, a sua organização partidária, o objetivo da sua luta: a reposição das mais amplas liberdades, a democracia, entre outras.

Estes exemplos são convocados, de entre muitos outros, para esta discussão, a fim de ajudarem a compreender e / ou a refutar algumas ideias universais que se construíram relativa­mente ao mentiroso e à mentira. Para conhecer e melhor compreender o comportamento do mentiroso, é, pois, necessário analisar o contexto social, profissional e político ao qual o mentiroso foi ou está exposto.

Existem, pois, mentiras em benefício próprio e mentiras em benefício de outros. Estas são comummente aceites como sendo bem-intenciona­das, pois são mentiras sociais com o objetivo, em muitos casos, de proteger outras pessoas: um familiar, um amigo, por exemplo.
Efetivamente, uma pessoa pode mentir se se encontrar numa situação moralmente des­confortável, para ocultar uma adversidade de cariz pessoal: o mentiroso inventa uma desculpa para não ir a um jantar de amigos, quando a verdadeira razão é a falta de dinheiro. Neste caso, recorre à mentira por constrangimento.

A mentira pode ser dita, para causar boa impressão: tal expediente é muito comum na construção identitária dos adolescentes. A insegurança e a inexperiência levam, por vezes, o jovem adolescente a orgulhar-se de que já fez o ainda não experimentado. O exagero e a invenção embelezam a verdade com algumas informações falsas. As conquistas académicas, os flirts, os feitos desportivos ou habilidades pessoais são, muitas vezes, adornados com mentiras para causar boa impressão.

Quando o mentiroso inventa detalhes da sua vida pessoal respeitantes à sua saúde para obter auxílio financeiro ou inclui dados falsos ao seu currículo, está a mentir para obter vantagens pessoais.

Uma pessoa falsifica a contabilidade de uma empresa para pagar menos impostos, ou mente ao seu cônjuge dizendo que estava num determinado lugar quando, na verdade, estava com outra pessoa. Ora, em qualquer um destes dois exemplos a pessoa mente para evitar uma punição, e isto pode(rá) acontecer quando a mentira é diretamente proporcional às conse­quên­cias associadas ao ato de ser apanhado a mentir. Existem, neste caso, ainda que em graus diferentes de motivação, para evitar uma punição. A mentira tem pernas curtas, no entanto

Nicolau Maquiavel, no Príncipe, deixa muito claro que subsiste uma diferença entre moral praticada na nossa vida quotidiana e a moral que circula nos meios políticos. As mentiras, para manterem o poder, são processadas por “razões de Estado”. A arte da política é proceder no sentido de conquistar os meios necessários para implementação e cumprimento dos seus progra­mas e ideias políticos. Neste caso, a mentira metamorfoseia-se numa virtude maquia­vé­lica.  

Chegados aqui, poderíamos expressar a ideia de que existem dois tipos básicos de mentiras: as mentiras pró sociais e as mentiras egoístas, e cada uma delas equilibra as con­tradições existentes entre o individual e o coletivo, i.e., entre o indivíduo e a sociedade. Mas o que assemelha um tipo de mentira ao outro continua a ser o facto de ambas serem socialmente condenáveis. A mentira só dura enquanto a verdade não chega.



[1] in Figueiredo, 1931. Novo Dicionário da Língua Portuguesa
[2] Citado por Silva, 2008, p. 41.

Bibliografia

Banza, A. P., & Gonçalves, M. F. ( 2018). Roteiro de História da Língua Portuguesa. Évora: Cátedra UNESCO, Universidade de Évora.
Bezerra, C. W., Leime, J. L., Matias, D. W., & Torro-Alves, N. (2015). Mentira: Aspectos Sociais e Neurobiológicos. Universidade Federal da Paraíba: Psicologia: Teoria e Pesquisa Jul-Set 2015, Vol. 31 n. 3, pp. 397-401.
Brito, A. M. (2010). Gramática: História, Teorias, Aplicações. Porto: Fundação Universidade do Porto – Faculdade de Letras.
Costa, P. E. (2019). Comportamento Verbal e não Verbal de Mentir e a Detecção de Mentiras. Universidade Estadual de Londrina.
Costa, T. C., Nascimento, A. S., & Silva, R. d. (2017). Variação e Mudança Linguística: As Influências Histórica-Sociais no Espaço Geográfico. Revista do Curso de Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazónia.
Craig, D. (2013). Como Identificar um Mentirosos. São Paulo: Editora Cultrix.
Figueiredo, C. d. (1913). Novo Diccionário da Língua Portuguesa.
Foucault, M. (1972). Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Gonçalves, F. P. (2016). Sobre palavras, seus usos e significados: o modelo normativo. São Paulo: Revista de Direito GV , V. 12 N. 1 | 188-216.
Mateus, M. H. A mudança da língua no tempo e no espaço. Lisboa: ILTEC / FLUL.
Nicolau, M. (2010). O Príncipe e os Escritos Políticos. São Paulo: Folha de São Paulo.
Silva, R. V. (2008). Teorias da mudança linguisticas e a sua relação com a(s) história(s) da(s) língua(s). Brasil: Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto - Vol. 3.

tradutor