Geórgia Tbilisi
quinta-feira, março 09, 2023
“Era fundamental que a praça do império mudasse de nome”
Proposta de Beatriz Gomes Dias no jornal publico de Hoje
(sábado 04 de Março de 2023)
Ao longo da história, muitas culturas e grupos étnicos foram forçados a adaptar-se às tradições e crenças dos conquistadores e/ou colonizadores. Os judeus foram um exemplo disso, quando muitos foram cristianizados à força ou sofreram perseguição por causa da sua religião. As mesquitas foram destruídas e substituídas por igrejas como parte do processo de conversão dos muçulmanos. Os escravos, foram batizados para receber nomes cristãos como parte do processo de assimilação à cultura dominante. Da mesma forma, os ciganos foram frequentemente tratados como pessoas de segunda classe e foram forçados a adaptar-se aos costumes e tradições da sociedade dominante.
Hoje em dia, a sociedade está cada vez mais consciente da importância da inclusão e da valorização da diversidade cultural. Isso reflete-se em iniciativas como a substituição de nomes de ruas que homenageiam figuras históricas controversas ou perpetuam estereótipos prejudiciais. As cidades estão a escolher nomes que reflitam a diversidade e a inclusão da população atual.
Embora ainda haja muito a ser feito para garantir a igualdade e a justiça social em todas as áreas da sociedade, é encorajador ver que as pessoas estão cada vez mais conscientes e comprometidas em promover a diversidade e a inclusão nas suas comunidades.
Embora a mudança de nomes de ruas seja uma tendência recente, é verdade que a história está repleta de exemplos de grupos minoritários que foram forçados a adaptar-se à cultura dominante.
No entanto, a grande diferença é que hoje procuramos ativamente valorizar a diversidade cultural e promover a inclusão invés de continuar a impor a cultura dominante sobre as minorias. A substituição dos nomes de ruas são uma tentativa de resposta as necessárias mudanças de mentalidade, mostrando que estamos dispostos a (re)conhecer o passado e trabalhar para criar um futuro mais inclusivo e igualitário.
Mas, é importante destacar que as mudanças dos nomes de ruas não são uma solução mágica para resolver os problemas históricos de exclusão e opressão. É necessário continuar a lutar e trabalhar para promover a justiça social e garantir que todas as pessoas sejam igualmente valorizadas e respeitadas.
De facto, substituir nomes de ruas não é diferente do que sempre se fez e que narrei na parte inicial deste texto e pode ser interpretado como uma forma de apagar ou destruir a história. Por isso considero que se deve explicar e colocar documentação adequada sobre as razões originais dos nomes e o contexto histórico em que foram escolhidos. Acabemos com a cultura de substituir o “velho e dominante” pelo “novo dominante”.
Não é necessário destruir as peças de arte, edifícios ou outras estruturas históricas que contêm representações de pessoas escravizadas ou foram construídos por mão-de-obra operária explorada. Esses objetos e locais são parte da história e da cultura humanas e podem ser usados como oportunidades para aprender e educar sobre as injustiças do passado.
No entanto, é importante contextualizar essas representações e estruturas, informando sobre a história da escravidão e da exploração para que sejam compreendidas na sua totalidade e não romantizadas. Podemos também adicionar informações explicativas sobre a mão-de-obra operária explorada que construiu vilas, cidades e outros locais, a fim de consciencializar as pessoas sobre as desigualdades sociais e económicas que historicamente ocorreram.
Nesse sentido, uma alternativa interessante seria manter os nomes originais das ruas, mas incluir lápides alusivas e explicativas, fornecendo informações adicionais sobre a história e o contexto em que foram escolhidos. Isso permitiria que as pessoas aprendessem mais sobre a história local e sua diversidade cultural, sem apagar o passado.
É importante lembrar que a história não é estática e está sempre em evolução. Ao mesmo tempo, a preservação da memória coletiva é fundamental para compreendermos o presente e planearmos o futuro. Portanto, a inclusão de informações explicativas sobre os nomes das ruas pode ser uma solução viável para conciliar a preservação da história com a promoção da diversidade e da inclusão independentemente da sua origem ou identidade.
segunda-feira, junho 07, 2021
Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal - Hannah Arendt
Eichmann em Jerusalém
Um relato sobre a banalidade do mal
Hannah Arendt
A cobertura do julgamento foi efetuada por diferentes meios de comunicação internacionais. Em representação da Revista New Yorker esteve Hannah Arendt. A cobertura deste julgamento despertou uma acesa discussão entre jornalista e académicos. As reportagens de Arendt para o New Yorker surpreenderam a comunidade intelectual que se dividiu entre acusadores e defensores das suas opiniões sobre o julgamento e os crimes cometidos pelos nazis durante o conflito. Alguns, sobretudo judeus, transformaram-na num alvo a abater. Arendt nas suas reportagens mostra que ao contrário de vilões e vítimas, neste julgamento existiam pessoas comuns que sobreviveram à sangrenta Segunda Guerra Mundial.
As reportagens de Hannah Arendt e o livro que viria a publicar mais tarde (maio de 1963), acerca do julgamento de Adolf Eichmann, permanecem atuais e, por isso, nos convoca para a necessária reflexão, como observaremos.
O julgamento direcionou a atenção dos mass media para a necessária discussão sobre a bestialidade dos crimes do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. O julgamento de Eichmann voltou a centrar as atrocidades do regime nazi na agenda política. Diferentes narrativas espoletaram. A da Hannah Arendt com uma leitura critica e incisiva, e outras com perceções mais emocionais, como foi, entre outras, o caso da do Comité Judaico Americano.
O julgamento transformou-se num espectáculo que emergiu como consequência da paixão do promotor pela teatralidade. Esta teatralização do julgamento, segundo Arendt, decorria dos interesses do primeiro-ministro David Ben-Gurion. “A lógica do julgamento de Eichmann, conforme concebido por Ben-Gurion, com ênfase em questões gerais, em detrimento de subtilezas legais, exigiria a exposição da cumplicidade de todos os funcionários e autoridades alemães na Solução Final” (Arendt, 2013, p. 29). Ben-Guiron era o diretor de cena deste processo.
Este julgamento, para Ben-Gurion, mostraria o que era viver entre não-judeus, e convencê-los-ia de que só em Israel um judeu teria segurança e poderia viver com honra (Arend, 2013, p. 18). Mas Hannah Arendt não se intimidou e não condescendeu fazendo uma das afirmações mais polémicas e inovadoras em termos (in)formativos da sua carreira: a cooperação das organizações judaicas com o nazismo. “Era Realpolitik sem tons maquiavélicos, e seus perigos vieram à luz anos depois, quando eclodiu a guerra, quando esses contactos diários entre as organizações judaicas e a burocracia nazi tornaram tão fácil para os funcionários judeus atravessar o abismo entre ajudar os judeus a escapar ou ajudar os nazis a deportá-los.)” (Arendt, 2013, p. 21)
Os judeus que muito contribuiriam para a construção da história de Eichmann, e dela fazer algo de verosímil, eram os sionistas com que o ex-oficial estabeleceu ligações nos seus primeiros tempos de serviço na inteligência do partido nazi. O sucesso dos nazis deve-se muito a este grupo que foi capaz de promover campanhas apoiadas por judeus influentes, que inclusive estimulavam o uso da estrela que os identificava mesmo antes da sua obrigatoriedade. Para este grupo de judeus a ascensão de Hitler trazia vantagens e uma atmosfera de vitória em relação aos (judeus) assimilacionistas que pretendiam viver na Europa, como Europeus.
A cooperação deles era “evidentemente a pedra angular” de tudo o que fazia. Não fosse a ajuda judaica no trabalho administrativo e policial - agrupamento de judeus em Berlim -, feito inteiramente pela polícia judaica teria acorrido o caos absoluto. Não há dúvida de que, sem a cooperação das vítimas, tudo seria diferente. Esta ajuda permitiu nas palavras de Eichmann salvar “o melhor material biológico” (Arendt, 2013, p. 54). Arendt conclui: para o judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição do seu próprio povo é, sem dúvida, um dos capítulos mais sombrio de toda a sua história de sombras (Arendt, 2013, p. 134). Arendt refere que os documentos sobre os quais se apoiam as suas reportagens denunciam o trabalho de funcionários judeus que desempenhavam funções que iam da compilação de listas sobre outros judeus e seus bens, até ao comércio das estrelas amarelas (Arendt, 2013, p. 134/35).
Foram responsáveis pelo salvamento de alguns dos seus, mas apenas daqueles que julgavam importantes, “os judeus menos “famosos” eram constantemente sacrificados”. Arendt constrói uma analogia assaz interessante: estes judeus sentiam-se como capitães, que para salvar o navio do naufrágio, atiravam ao mar parte da sua preciosa carga. Com cem vítimas salvavam mil, com mil salvavam 10 mil (Arend, 2013, p. 144/45).
Em Amesterdão assim como em Varsóvia, em Berlim como em Budapeste, os funcionários judeus mereciam toda a confiança ao compilar as listas das pessoas e das suas propriedades, ao reterem o dinheiro dos deportados para abaterem as despesas da sua deportação e extermínio, ao controlarem os apartamentos vazios, ao suprirem forças policiais para ajudarem a prender os judeus e conduzirem-nos aos comboios, e até, num último gesto, ao entregarem os bens da comunidade judaica em ordem para o confisco final (Arendt, 2013, p. 134).
Para os Conselho de Judeus existiam “princípios sagrados” que ajudavam a selecionar os judeus para a salvação e esses princípios centravam-se nos “judeus mais importantes”. A “carga era aliviada” com os judeus debaixo e proteção dos judeus de cima, i.e., eram selecionados para salvação os judeus mais importantes e esta responsabilidade era outorgada, pelos nazis, aos Conselhos Judaicos que elaboravam “listas de transportes” com “a idade, sexo, profissão e país de origem”. A aceitação de categorias privilegiadas, entre outras funções de colaboração com os nazis, foi o começo do colapso da respeitável sociedade judaica.
A culpa de Eichmann provinha da sua obediência. E a sua obediência levou-o à condenação à morte.
As irregularidades e anomalias do julgamento de Eichmann em Jerusalém foram imensas e de grande complexidade legal.
Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judaica, e Heinrich Blücher, recém-casados, foram capturados e enviados para o campo de concentração em 1940. Após a sua fuga do campo de concentração de Gurs, Hannah relata a situação desumana em que viviam os presos: violações, brutalidade, fome, imundície e medo fizeram parte da sua rotina durante os sete meses de confinamento forçado, na companhia de outras mulheres.
Mas as suas reportagens fizeram emergir o que de pior existe nos seus opositores fanáticos. Foi considerada, por muitos, antissemita e acusada de nutrir ódio contra o seu próprio povo. Foi, igualmente, designada de Hannah Eichmann.
Este texto que tem como base o livro Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, expõe-nos as seguintes e atuais problemáticas:
a) a maneira como, Eichmann foi retratado pelos mass media e consequente instrumentalização dos jornalistas pelo emergente poder israelita;
b) a importância de Hannah Arendt na luta e busca da verdade face à demanda israelita e pressão da opinião pública;
c) este foi um julgamento para condenar as atrocidades nazis contra os judeus, esquecendo outras vítimas, como é o caso dos ciganos, que foram, igualmente, perseguidos e que tiveram proporcionalmente tantas pessoas perseguidas, gaseadas e queimadas vivas quanto tiveram os judeus.
c) este é um julgamento que descreve a imposição da estrela de David aos judeus, mas ignora os triângulos que identificavam outras vítimas dos nazis, como por exemplo: a) o triângulo castanho (imposto aos ciganos: rom ou Roma, sinti, calons ou calés); b) o triângulo vermelho (imposto aos dissidentes políticos: comunistas, sociais-democratas, anarquistas) e o triângulo rosa (imposto aos homossexuais), entre outros.
Sobre a segunda guerra mundial constatamos que existe uma campanha monopolista na imprensa, na televisão, no cinema, na rádio, nos teatros, na literatura, entre outros, que é favorável e contribui para o esclarecimento do que aconteceu aos judeus que foram vítimas das atrocidades e do horror nazi. O mesmo não se passa com as cumplicidades dos judeus que colaboraram com o regime nazi na matança do seu povo, como relata Hannah Arendt neste seu importantíssimo livro. A “carga era aliviada” com os judeus debaixo e proteção dos judeus de cima”, entrou no esquecimento geral, da mesma maneira que a colaboração dos principais países europeus com a ascensão e rearmamento da Alemanha nazi. Nem todos os alemães foram nazis, da mesma forma que nem todos os judeus foram vítimas. Nenhum indivíduo pode transportar uma culpa coletiva.
Neste julgamento fica claro que nada escapa aos reguladores da moral judaica, “puxam pelos galões”, mas, como demonstra Hannah Arendt estão desconectados da realidade. Ou será que não estão? Será que iniciaram aqui, com este julgamento e antes com a constituição do estado de Israel, uma “nova realidade”?
A história deve investigar e produzir conhecimento que nos permita pôr em causa os juízos estabelecidos. É necessário que a história, propriamente dita, seja critica, fundamentada em análises dos textos, na verificação dos testemunhos e que não admita “caiar” os factos ou manipulando-os de acordo com interesses estabelecidos. “O manipulador da “memória” tenta alcançar a visão total, mas a sua consciência não consegue captar de uma só vez mais do que sinais dos pequenos instantes. (Coelho, 2020, p. 14).
As verdades, quando não submetidas a permanentes questionamentos, podem perder o efeito da verdade pelo exagero da falsidade. Hannah Arendt não se intimidou com os seus delatores, e contra tudo e contra todos, muito nos ajudou a aproximarmo-nos da pluralidade de acontecimentos e atores que emergiram e se movimentaram, antes e após a Segunda Guerra Mundial. A publicação deste seu livro faz parte desse enorme contributo.
Bibliografia
Arend, H. (2013). Eichmann em Jerusalém Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Brasil: Editora Schwarcz.
Coelho, A. B. (2020). História e Oficiais da História . Lisboa: Caminho.