quinta-feira, junho 26, 2025

A violação do espaço aéreo do Irão, o direito internacional e bombardeamento e destruição da instalação nuclear iraniana de Fordow

 A verdade como construção estratégica: os discursos sobre a instalação nuclear iraniana de Fordow 

A violação do espaço aéreo do Irão, o direito internacional e bombardeamento e destruição da instalação nuclear iraniana de Fordow

 

A alegada destruição da instalação nuclear iraniana de Fordow, na sequência de um ataque aéreo norte-


americano. Argumenta-se que a “verdade”, neste caso, não é uma questão de factos objectivos, mas sim um recurso simbólico disputado, moldado por dinâmicas de poder, interesses internos e performance diplomática.

Um conflito de versões

O ataque à instalação de enriquecimento de urânio de Fordow, situada perto da cidade iraniana de Qom, desencadeou uma onda de reacções internacionais e de discursos contraditórios. O presidente norte-americano Donald Trump afirmou que a instalação foi “completamente destruída” por bombardeamento de precisão dos EUA, com o apoio e cooperação de Israel. O governo israelita rapidamente corroborou essa afirmação, classificando a missão como um sucesso estratégico. No entanto, análises preliminares dos serviços de informação norte-americanos indicam que a destruição terá sido parcial, com a estrutura subterrânea e os sistemas nucleares centrais ainda operacionais.

Surpreendentemente, o próprio Irão não desmentiu categoricamente a alegada destruição. Pelo contrário, certos discursos oficiais pareceram sugerir a aceitação parcial dessa versão. Esta posição levanta uma questão essencial para a análise: poderá a falsa percepção de destruição beneficiar todas as partes envolvidas?

A verdade como construção social

A realidade social é construída através de processos simbólicos e institucionais. O caso de Fordow exemplifica como a “verdade” - ou melhor, a sua percepção - pode ser manipulada estrategicamente. Cada Estado envolvido formula uma versão dos acontecimentos que não visa descrever a realidade empírica, mas cumprir objectivos específicos de legitimação interna e posicionamento externo.

Nos EUA, a narrativa de destruição total funciona como capital político. Para Israel, reforça o sentimento de segurança e eficácia perante o seu eleitorado. No Irão, permite alegar a perda de capacidade nuclear - justificando a recusa da presença de organismos de verificação internacionais -, ao mesmo tempo que se presume que os componentes críticos do programa nuclear tenham sido previamente retirados e ocultados.

 

O poder de definir a realidade

A “ordem do discurso”, refere-se ao modo como certos enunciados ganham legitimidade institucional e epistemológica. Neste contexto, a afirmação de Trump de que Fordow foi destruída não depende de relatórios técnicos, mas sim da autoridade discursiva do poder político - uma performance de verdade.

 Este é o poder simbólico com a capacidade de impor uma visão do mundo como sendo legítima. Os actores que dominam o campo político ou militar têm também mais condições para definir a versão dominante da realidade. A luta pelo controlo da narrativa sobre Fordow é, pois, uma luta simbólica travada tanto no espaço interno de cada país como na arena diplomática internacional.

O Irão e a performance de vulnerabilidade

A conceptualização da vida social como uma sucessão de performances, oferece uma lente útil para interpretar a estratégia iraniana. Ao aceitar tacitamente a narrativa da destruição, o Irão encena uma performance de vulnerabilidade, que pode ser usada para suspender as exigências de monitorização nuclear e reconfigurar discretamente a sua actividade.

Esta manobra visa o controlo da definição da situação: um acto simbólico através do qual um actor molda a percepção do público (nacional e internacional) para servir os seus próprios interesses estratégicos.


A verdade como ferramenta de legitimação e identidade nacional

As versões sobre Fordow não existem no vazio: são dirigidas a audiências específicas. A nível interno:

  • Nos Estados Unidos, Trump procura recuperar capital político, mobilizando uma narrativa de força e sucesso militar;
  • Em Israel, a ideia de missão cumprida sustenta a legitimidade de uma política externa agressiva, e responde ao medo existencial do programa nuclear iraniano;
  • No Irão, a destruição (ou a sua aceitação) é usada para reforçar a ideia de soberania ameaçada e justificar o afastamento de entidades internacionais como a AIEA.

Os discursos sobre Fordow funcionam como instrumento de identidade colectiva: as nações constroem-se também através dos inimigos que definem e das ameaças que alegam combater ou sofrer.

Conclusão: quando a verdade serve a todos

A controvérsia sobre Fordow mostra que a verdade factual pode tornar-se irrelevante quando todos os actores ganham com uma ilusão partilhada. A destruição total é improvável do ponto de vista técnico — Fordow é uma instalação subterrânea concebida para resistir precisamente a ataques aéreos. Mas, se todos os envolvidos têm interesse em afirmar que foi destruída, essa narrativa transforma-se em realidade simbólica com efeitos políticos concretos.

Neste jogo de discursos, o que está em causa não é apenas o controlo de uma instalação nuclear, mas o controlo do significado dessa instalação, num tabuleiro onde a política internacional se cruza com a construção simbólica da realidade.


Referências bibliográficas

  • Berger, P., & Luckmann, T. (1966). A Construção Social da Realidade. Lisboa: Dinalivro.
  • Bourdieu, P. (1991). O Poder Simbólico. Lisboa: Bertrand Editora.
  • Foucault, M. (1971). A Ordem do Discurso. Lisboa: Edições 70.
  • Goffman, E. (1956). A Representação do Eu na Vida de Todos os Dias. Lisboa: Relógio d’Água.
  • Habermas, J. (1984). A Teoria da Acção Comunicativa. Lisboa: Edições 70.

 


Sem comentários:

tradutor