Poucos séculos na história da humanidade podem se orgulhar do nascimento de um desses raros espíritos voltados poderosamente para o universalismo, que abordam com igual dedicação todas as disciplinas do saber praticadas no seu tempo e abrem caminhos novos para territórios ainda desconhecidos. Al-Biruni, um dos grandes sábios do mundo islâmico, nascido há 1 000 anos, foi um desses espíritos raros.
Astrónomo, matemático, físico, geógrafo, historiador, linguista, farmacólogo, além de filósofo e poeta, Al-Biruni trabalhador prodigioso apesar dos contratempos sofridos na sua vida - prestou uma contribuição excepcional ao progresso intelectual da humanidade. Espírito científico na acepção moderna da palavra, ele soube analisar, transmitir, ampliar, e mais ainda, integrar todo o conhecimento elaborado por seus predecessores e por seus contemporâneos, tanto do mundo mediterrâneo como do mundo indo-iraniano. Foi tão grande a sua contribuição que hoje alguns comentaristas o colocam acima do grande Avicena.
Abu I-Rayhan Muhammad ibr Ahmad al-Biruni não foi apenas um grande sábio da Ásia Central, um homem de espírito enciclopédico. As suas obras marcaram uma etapa na história do pensamento humano, etapa cuja importância cresce, à medida que novas obras vão sendo descobertas. Quando, há uma centena de anos, a sua Cronologia das Nações Antiga foi publicada em russo, Al-Biruni foi recebido apenas como um dos mais interessantes historiadores medievais. Mas com a descoberta e o estudo das suas obras - sobre matemática, geografia astronomia – o seu prestígio foi crescendo a ponto de empanar o brilho de muitos seus contemporâneos.
Foi no século XIX que a Europa descobriu Al-Biruni. Desde então os estudiosos têm verificado que ele estava tão à frente do seu tempo que suas observações arrojadas são às vezes incompreensíveis para muitos eruditos.
Inventor de uma fórmula de impressionante simplicidade para calcular a circunferência da Terra, ele lançou também a hipótese do movimento da Terra em volta do Sol e formulou a ideia da alternância cíclica das eras geológicas. “Com o passar do tempo o mar será terra e a terra sucederá ao mar”- foi nessa intuição genial que ele baseou sua teoria da formação geológica da Terra.
Como não indagar sobre as condições nas quais Al-Biruni pôde dominar de tão alto a sua época e realizar uma obra que fez de seu nome, pelo menos no Oriente, o símbolo do século XI?
O Estado de Corásmia há muito já se orgulhava de possuir uma civilização avançada. Com seus palácios imponentes, suas mesquitas ricamente decoradas, seus inúmeros colégios religiosos (madraças), as cidades gozavam de uma prosperidade que progredia ao lado de um respeito profundo pelas ciências.
Nos séculos X e XI o califado árabe desmantela-se. E sobre suas ruínas se edificarão novos Estados que darão à Ásia Central uma plêiade de grandes pensadores, entre os quais Abu Nasr al-Farabi e Avicena.
É nessa região privilegiada, e mais precisamente em um subúrbio de Kath, capital da Corásmia, que nasce Al-Biruni a 4 de Setembro de 973. “Ignoro a minha genealogia. Não sei quem foi meu avô. Como poderia saber, se nem sei quem foi meu pai?”, dizem uns versos escritos por ele primeiro preceptor do futuro sábio foi um grego que o destino o fez conhecer na infância. Esse homem instruído encarregou Al-Biruni de lhe levar plantas, sementes e frutos - e assim nasceu sua vocação para o estudo da natureza. “A maior parte dos meus dias passou-se sob o signo dos benefícios e das distinções cujos degraus eu não parava de subir. A família dos Iraque me nutria com o seu leite, enquanto Mansur me educava.” É assim que Al-Biruni fala da etapa seguinte de sua vida. Com efeito, a história guardou o nome de um mecenas pertencente à dinastia local, Abu Nasr Mansur ibn-Ali ibn-Iraq, que iniciou Al-Biruni na geometria de Euclides e na astronomia de Ptolomeu.
O nosso sábio em perspectiva já tinha um pé no portal de uma carreira de astrónomo. Ele estudou as estrelas e os minerais para penetrar nos segredos do céu e da Terra, e leu milhares de livros para compreender as engrenagens da história. O primeiro mapa-múndi feito na Ásia Central saiu de suas mãos, mas ele não foi menos hábil na arte da poesia.
Al-Biruni viveu a atmosfera febril dos últimos anos do poderio dos samânidas e foi testemunha da ascensão e da decadência dos impérios Qarakanida e Ghaznavide. Em muitas passagens dos seus livros percebe-se o eco dos conflitos sociais, das guerras dinásticas e das incursões bárbaras. Assim como as ciências não podem ficar à margem de sua época, muito menos pode a história. Foram talvez os estremecimentos políticos de Corásmia que, incitando Al-Biruni a buscar no passado a explicação das vicissitudes de seu tempo, deram-lhe a ideia da sua primeira grande obra.
Al-Biruni tinha 27 anos quando terminou a Cronologia das Nações Antigas. “O meu objectivo neste livro - escreveu ele naquele fim do século X - é determinar da maneira mais segura a duração das diferentes eras da humanidade.” E ele começa a sua pesquisa nas origens, desde a criação do homem até o dilúvio; depois passa a referir todos os factos então conhecidos sobre a época de Nabucodonosor e de Alexandre da Macedónia.
Na Cronologia o leitor curioso inicia-se nas subtilezas dos calendários árabe, grego, persa etc. A crónica dos soberanos, dos heróis e dos acontecimentos políticos se mistura com descrições da civilização e dos costumes. Como se vê, trata-se de um trabalho semi-histórico e semi-etnográfico, que conserva o seu valor ainda hoje.
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Com este número especial, O Correio da Unesco (Agosto 1974) pretende dar a seus leitores um perfil aproximado desse grande humanista que foi Al-Biruni.
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