sexta-feira, junho 13, 2025

 Contributo para entender a tendência que algumas figuras políticas e/ou movimentos da direita que tendem a igualizar a extrema-esquerda à extrema-direita - ou de tratá-las como dois lados igualmente perigosos de um mesmo espectro radical - tem várias razões políticas, ideológicas e retóricas, ainda que haja diferenças substanciais entre os objetivos e métodos de cada uma dessas correntes.

 

1. Retórica de simetria moral: “os extremos tocam-se”

 

Um argumento muito usado pela direita é a ideia de que “os extremos se equivalem” - ambos “são autoritários, radicais, anti-democráticos e/ou violentos”.

 Isto permite:

  • Deslegitimar a esquerda como um todo, colocando os seus elementos mais radicais no mesmo patamar da extrema-direita, mesmo quando há claras diferenças de métodos ou intenções.
  • Neutralizar críticas à extrema-direita, dizendo que a esquerda “também é extrema”.
  • Reforçar uma imagem de moderação da direita, posicionando-se como um suposto “centro sensato” entre dois polos radicais.

 

Este tipo de equivalência procura funcionar politicamente, mesmo que não seja historicamente e/ou filosoficamente sustentado.

2. Diferenças reais entre os extremos:

É importante reconhecer que os objetivos políticos da extrema-esquerda e da extrema-direita não são simétricos.

Característica

Extrema-direita

Extrema-esquerda

Visão de mundo

Hierárquica, nacionalista, excludente

Igualitária, internacionalista, inclusiva

Identidade e exclusão

Exaltação de raça, nação, religião; tende a discriminar minorias (étnicas, sexuais, migrantes)

Luta por direitos de grupos oprimidos; foco em inclusão e equidade

Métodos autoritários

Pode defender repressão, censura, violência estatal, culto à autoridade

 

Pode tender ao autoritarismo em regimes históricos, mas em contextos de revolução social e não repressão de minorias

Discurso público atual

Frequentemente anticientífico, conspiracionista, revisionista

Discurso geralmente ligado a lutas sociais e identitárias, mesmo quando radicais

 

A extrema-esquerda, ainda que radical nas suas crítica ao capitalismo e ao sistema liberal, luta por uma redistribuição de poder e recursos em favor dos trabalhadores. Já a extrema-direita procura manter ou restaurar as hierarquias tradicionais, muitas vezes com base na raça, no género, na nacionalidade e/ou religião.

 

3. A questão da violência

Um ponto que a direita usa para justificar a equivalência é o uso da violência por setores da extrema-esquerda, sobretudo os ligados à guerrilhas em certos contextos históricos.

 Mas é importante distinguir entre:

  • Violência revolucionária contra estruturas de poder (como o capitalismo ou regimes autoritários)
  • E violência repressiva ou de extermínio, frequentemente associada à extrema-direita (como neo-nazis, “supremacia branca”, milícias e/ou etnocídio)

Ambas podem usar a violência, sim, mas com objetivos, alvos e justificações radicalmente diferentes.

4. Lutas identitárias e não-discriminatórias

 A extrema-esquerda contemporânea é muitas vezes identificada com lutas identitárias - como os direitos LGBTQIA+, igualdade racial, feminismo, etc. Estás lutas não são discriminatórias, mas sim anti-discriminatórias: procuram dar voz e vez a grupos historicamente marginalizados.

A direita, ao tratar estas lutas como “radicalismo identitário”, inverte o discurso e tenta retratar a busca por equidade como uma forma de “discriminação reversa”, o que não se sustenta teoricamente nem juridicamente.

5. Resumo: porque é que esta equiparação é feita?

  • É politicamente conveniente para deslegitimar a esquerda e se auto-proteger;
  • Serve como arma retórica para evitar enfrentar as especificidades da extrema-direita;
  • Ajuda a criar um falso “centrismo” ou “moderação” que se coloca acima dos “dois extremos”;
  • Ignora as diferenças qualitativas entre projetos políticos: os que buscam a emancipação social e os que promovem a exclusão e o autoritarismo.

 

 


segunda-feira, março 27, 2023


    
    Como o ódio racial transmuta um miúdo bonito, feliz, sossegado e afável num “monstro”?



No passado dia 25 de Março fui ao cinema ver o filme “Justiça para Emmett Till” e de lá saí revoltado, aborrecido e pesaroso.

O filme descreve-nos o breve percurso de um jovem de 14 anos, Emmett Till, que decidiu viajar da sua casa em Chicago para o sul dos Estados Unidos para visitar os seus parentes em Money, Mississippi em agosto de 1955. Alertado pela mãe para os perigos da viagem ao Mississípi, Emmett Till serenou-a dizendo-lhe que nada da mal iria suceder. Radiante partiu para o Mississípi. 


Alguns dias depois da sua chagada ao Mississípi, em 24 de agosto daquele ano, Till entrou numa mercearia local com os primos para comprar rebuçados. Lá dentro elogiou a beleza da empregada, mulher branca chamada Carolyn Bryant, dizendo-lhe que ela se parecia com uma artista que ele admirava e de quem tinha uma foto na sua carteira. Mostrou-lhe a foto.

Quatro dias depois, Bryant, marido de Carolyn Bryant, e o seu irmão, J.W. Milam, invadiram durante a noite a casa do tio de Till e levaram-no: espancaram-no, torturaram-no e atiraram-no ao rio.

O seu corpo foi encontrado três dias depois, inchado e desfigurado. A mãe decidiu que o caixão permaneceria aberto durante o seu funeral em Chicago para que as pessoas pudessem ver as brutalidades cometidas contra o seu filho. 

O assassinato de Emmett Till converteu-se em mais um motor mobilizador para a luta a travar contra o ódio e violência racial e também um marco relevante na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. 

Um filme a não perder. O ódio racial nos Estados Unidos, nas “nossas” sociedades, está presente na multiplicidade das suas ações. As marcas da sua violência permanecem. 

Infelizmente, a história dos Estados Unidos é marcada por diversos massacres e mortes de pessoas negras, que evidenciam a longa trajetória de racismo e violência racial neste país. Descrevo alguns dos casos mais conhecidos:

- Massacre de Tulsa: também conhecido como "Black Wall Street", ocorreu em 1921, em Tulsa, Oklahoma, quando uma multidão de pessoas brancas atacou e incendiou um bairro próspero de pessoas negras, matando dezenas e destruindo milhares de casas e empresas.


- Massacre de Rosewood: em 1923, uma multidão de pessoas brancas invadiu e destruiu a cidade de Rosewood, na Flórida, como represália por um suposto ataque sexual perpetrado por um homem negro contra uma mulher branca. Estima-se que pelo menos seis pessoas negras foram mortas, e a cidade foi completamente destruída.

- Assassinato de Martin Luther King Jr.: em 1968, Martin Luther King Jr., um dos principais líderes do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, foi assassinado em Memphis, Tennessee.

- Massacre de Charleston: em 2015, um homem branco invadiu uma igreja frequentada por pessoas negras em Charleston, Carolina do Sul, e matou nove pessoas com tiros.


sexta-feira, março 24, 2023

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia alguns comentadores...

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia alguns comentadores, órgãos de comunicação social, alguma imprensa escrita e as redes sociais constroem discursos que assentam nas seguintes premissas:  



eles poem causa os nossos valores”, “o nosso modo de vida”, “a liberdade de expressão, a nossa liberdade de escolha” “a liberdade de viver sem medo e coação” e a “propaganda deles que assenta na mentira”. Concluindo que estas são algumas das (nossas) liberdades que (eles) podem pôr em risco na situação atual.
 


 Estes discursos são frequentemente usados ​​por líderes políticos, comentadores e pelos meios de
comunicação
social para justificar a necessidade de uma resposta forte e unificada à agressão “deles”.
 


No entanto, é importante lembrar que essas premissas são frequentemente simplificadas e usadas para fins políticos. Embora a defesa dos valores ocidentais, da liberdade e dos direitos humanos seja importante, é preciso reconhecer que esses valores também sãos usados ​​como uma justificação para a intervenção militar e outras formas de coerção. 


A liberdade e as premissas referenciadas em relação a “eles” não são uma via de mão única, uma estrada de sentido único. As “nossas”, as ações - dos países ocidentais -, também podem ameaçar as liberdades e os direitos humanos em outras partes do mundo. A propaganda não é também uma característica exclusiva “deles”. Os governos ocidentais,” nós e a órgãos de comunicação social, alguma imprensa escrita e as redes sociais também usam informações enganosas, hegemónica e distorcidas para moldar/formatar a opinião pública. 


     Estas ideias não são novas. Não vestem roupagens modernizadas. São historicamente instrumentalizadas e tem o hábito cultural de legitimar e de empregar amplas generalizações através das quais a realidade é dividida em dois coletivos: “nós” e “eles”. Estas categoria são mais uma interpretação judicativa do que uma designação neutra. 


    Estas narrativas (re)lembraram-me e remetem-me para o excelente livro de Edward Said, (“Orientalismo”, 1997). Que nos conduz para a reflexão de que: 


        Nestas categorias encontra-se a oposição rigidamente dual do "nosso" e do "deles", com o primeiro sempre a usurpar o segundo (a ponto, mesmo, de fazer do "deles" apenas uma função do "nosso"). 


    Os "nossos" valores eram (digamos) liberais, humanitários, corretos; eram sustentados pela tradição das belles-lettres, pela erudição bem informada, pela investigação racional; como europeus (e homens brancos), "nós"…" 

Tal retórica, seja onde for e quando for que ocorra, lembra-nos que a Europa é um imponente edifício de erudição e cultura que foi construído também com “eles” (as colónias, ...). 


    Ora, Edward Said discute a construção binária de "nós" e "eles" argumentando que essa construção é uma forma de essencialismo, que divide o mundo em duas categorias fixas e imutáveis. Estas duas categorias cruzaram os tempos históricos nas mais diferentes configurações sendo a mais ressente a proferida por José  Borrell (Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança): 


"A Europa é um jardim o resto é selva" 


    Esta argumentação e construção binária é usada para justificar o imperialismo e o colonialismo, ousando inferir que o Ocidente é superior e civilizado em comparação com o “eles” "bárbaros" e "primitivos". É uma representação simplista e distorcida, é prejudicial tanto para os povos europeus como para os povos de geografias diferentes. Inibe a necessária compreensão e cooperação entre os povos. 

 

    Os meios de comunicação social desempenham um papel fundamental na construção das narrativas sobre outras culturas e sociedades. Infelizmente, muitas vezes, essas narrativas são hegemonizadas pelos valores ocidentais, em detrimento das culturas e sociedades não ocidentais. Os órgãos de comunicação social, muitas vezes, apresentam uma imagem estereotipada e distorcida de outras culturas e sociedades. Isso contribui para a imergência de valores radicalizados (extrema-direita) sobre “nós” e para a discriminação da diversidade cultural em “nós” existente.  

 

    Em conclusão, a hegemonia dos valores ocidentais, “nós”, frequentemente usados por líderes políticos, comentadores e pelos meios de comunicação social para justificar a necessidade de uma resposta forte e unificada à agressão “deles” é um problema sério que impede a compreensão mútua e a cooperação entre culturas e sociedades. A democracia remete-nos para a necessidade de estarmos mais atentos não apenas à diversidade cultural, mas também contribuirá para uma compreensão mais justa e precisa do mundo em que vivemos. 

 

 

tradutor